07/07/2023 - 8:00
O retorno às raízes na gastronomia está em curso, é inegável. Apesar de o sabor ainda ser o clímax, como diz Luiz Filipe Souza, chef do Evvai, na capital paulista, retomar conhecimentos ancestrais tem a ver com sustentabilidade, história e até necessidade. Se no passado embutidos e fermentados eram produzidos para suprir a ausência de geladeira, em alguns territórios caiçaras a produção de conservas ainda agrega valor ao trabalho de pequenos pescadores.
“A ferramenta que a gente vem utilizando é a conservação do pescado sem energia elétrica, porque essas comunidades não têm recursos”, fala o pesquisador Rodolfo Vilar, um dos idealizadores do Projeto A.MAR, que tem base em Ilhabela e atua com a valorização da pesca artesanal em comunidades tradicionais. “É a estrela norte do projeto”, complementa.
Os anos de estudo sobre os protocolos de conservação de pescado fora do gelo resultaram em uma série de subprodutos baseados em receitas clássicas: as alheiras de Portugal, feitas com peixes, e não com porcos, a bottarga, ovas de tainha que já eram usadas pelos fenícios, e o molho de peixe garum, do Império Romano. “Acho muito importante quem se preocupa em fazer essa retomada”, diz Ygor Lopes, chef do AE! Cozinha, em São Paulo, que não abre mão da clássica bottarga, ova de peixe salgada, para a finalização de receitas contemporâneas.
O mergulho mais profundo e recente do A.MAR é na cultura que conecta a ilha ao outro lado do mundo: a japonesa.
Dar um destino ao bonito descartado pelos pescadores locais por não ter valor comercial foi o que trouxe o katsuobushi para o centro da pesquisa.
“Não podemos pensar em futuro sem falar de sustentabilidade, e muitas técnicas e conhecimentos ancestrais são utilizados para evitar o desperdício e ter o aproveitamento integral dos alimentos.”
Telma Shiraishi, chef do Aizomê, na capital paulista, e embaixadora de culinária japonesa.
A conserva seca feita com o primo do atum é muito utilizada nessa cozinha típica. Base do caldo dashi, utilizado no lámen e em outros pratos emblemáticos, normalmente é encontrada em flocos no Brasil.
A busca pela sustentabilidade encontrou a história e, já com o estudo em andamento, Vilar descobriu que a conserva seca de bonito era preparada pela família Imakawa na mesma ilha, há mais de cem anos.
“Tudo faz muito sentido quando você tem um componente cultural, uma tradição. Quando você põe essas camadas a mais, tem mais profundidade”, afirma o pesquisador. A “estrela norte do projeto” vai ganhando mais brilho.

Influência contemporânea
“A ancestralidade começa no campo”, alerta o cozinheiro e produtor rural Rafa Bocaina. É ele o responsável por colocar os porcos carunchos nativos da Serra da Bocaina literalmente na boca do povo.
“Uma fatia de culatello, que pesa dois ou três gramas, e que coloco dentro de um menu degustação de 14 passos, consegue contar toda a história em um bocado”, diz o chef Luiz Filipe Souza.
Bem antes dos embutidos vem o manejo, fundamental para manter as características do porco caruncho da serra. É um sistema de criação extensiva ancestral, mas adaptado ao contexto contemporâneo.
Os bichos são criados soltos, mas com cercas, para não invadirem o jardim do vizinho. Comem de tudo e também recebem uma dieta extra de soro de leite e mix de grãos. Há rotação de pastagem e bebedouro móvel. “A ancestralidade é fundamental, porque traz informações científicas a que pessoas chegaram por resultados empíricos. Mas é preciso usá-la à luz do conhecimento moderno”, fala o produtor.

Na cozinha, a lógica se repete. Na produção no sítio em Silveiras (SP), cidade em que cresceu e para a qual retornou depois de trabalhar com chefs estrelados de diversos países, Bocaina produz charcutaria, os embutidos, de modo artesanal a partir dos animais próprios: coppa, guanciale, sobrassada, banha, o chouriço caipira, o torresmo tropeiro do Zé Dito, o tal culatello, que leva a parte central da perna do porco, sal e pimenta-do-reino.
Com poucas interferências nas receitas, sejam locais ou europeias, o resultado final tem que representar a Bocaina.
“É uma forma de comer a própria serra. Os porcos sorvem o território e entregam na forma de salame, de lardo.”
Cozinheiro e produtor rural Rafa Bocaina
Por pura logística, ele lembra que certas práticas têm que ser revistas. Se a salga nascida com os romanos e o uso de frutíferas para defumação continuam viáveis, a maturação em lugares subterrâneos nem sempre – mas dá para criar condições similares sobre a terra. Vão se criando técnicas, produtos únicos e histórias que, quem sabe um dia, também serão ancestrais.