07/10/2022 - 9:30
Segundo o poeta uruguaio Mario Benedetti, “quando um visconde encontra outro visconte, os dois falam de viscondes; quando um escritor encontra outro escritor, os dois falam de escritores”. Pois foi isso que aconteceu em 1967, em uma semana histórica para literatura, quando o peruano Mario Vargas Llosa e o colombiano Gabriel García Márquez se encontraram na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Engenharia de Lima, no Peru. Em duas tardes mágicas, em 5 e 7 de setembro, esses dois viscondes da escrita falaram sobre diversos temas da vida, mas, sobretudo, sobre escritores – como Benedetti já avisara.
Aberta ao público, a entrevista teve lotação esgotada. O conteúdo da conversa foi publicado sob o título de Duas Solidões. O problema é que a pequena tiragem à época esgotou-se rapidamente e saiu de circulação. O livro volta às livrarias em nova edição, mais de cinco décadas depois, com tradução de Eric Nepomuceno e textos de Pilar del Río e Socorro Acioli.
Aos 31 anos, Vargas Llosa já era uma estrela em seu país desde o lançamento do livro de contos Os Chefes, em 1959. Suas obras mais recentes, A Cidade e os Cachorros e A Casa Verde, eram fenômenos de vendas. Por isso chamou a atenção dos presentes que era justamente ele quem entrevistaria García Márquez, e não o contrário. Aos 40 anos, o colombiano havia alcançado certo sucesso com Ninguém Escreve ao Coronel e A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada, mas ainda estava longe do auge: Cem Anos de Solidão havia sido lançado há três meses em alguns países, mas nenhuma cópia havia chegado ao Peru. Não era, portanto, o ídolo que ganharia o Nobel em 1982 – o próprio Vargas Llosa também seria agraciado com a comenda sueca, mais tarde, em 2010.

As poucas fotos que ilustram o livro revelam muito mais que os dois escritores, anfitriões locais e o público que lotava o auditório. Já havia ali duas visões de mundo: Vargas Llosa, elegante, cabelos engomados, colete e nó de gravata impecável; García Márquez de cabelos rebeldes, bigode, no segundo dia do evento não estava sequer de gravata. Na época, ambos apoiavam a revolução cubana, que chegara ao poder em 1959. E se posicionavam contra as ditaduras que assolavam a América Latina: Alfredo Stroessner no Paraguai, Anastasio Somoza na Nicarágua, René Barrientos na Bolívia, Juan Carlos Onganía na Argentina. No Brasil, vivíamos a época sombria do general Artur da Costa e Silva. O Peru, em relação a isso, era um oásis governado por um presidente eleito pelo povo, Fernando Belaúnde Terry. Os dois escritores, no entanto, passariam a discordar politicamente aos poucos, até romperem definitivamente em 1971. Enquanto Gárcia Márquez seguiu fiel aos ideais de Fidel Castro, Vargas Llosa foi se movimentando à direita, até virar ícone do liberalismo econômico.
Além de ser um retrato magnífico sobre os temas que importavam nos anos 1960, o livro vale pela entrevista em si, intitulada O Romance na América Latina. O duelo entre gigantes se revela na primeira frase: “Para que serve um escritor?”, provoca Vargas Llosa. “Tenho a impressão de que comecei a ser escritor quando me dei conta de que não servia para nada”, responde García Márquez. “Comecei a escrever os primeiros contos e, naquele momento, de verdade não tinha a menor noção de para que servia escrever. No princípio, eu gostava porque publicavam minhas coisas, e descobri o que mais tarde declarei diversas vezes e que tem muito de verdade: escrevo para que meus amigos gostem mais de mim.”
O soco que selou o fim da amizade
É um dos episódios mais famosos e controversos da literatura latino-americana: em fevereiro de 1976, García Márquez se encontrava em frente a um cinema na Cidade do México, quando avistou o amigo. Correu para abraçá-lo: “Mario, Mario…”
Foi recebido com um soco no olho esquerdo. Nenhum dos dois jamais falou sobre o assunto, mas a versão mais provável é se que tratou de ciúme. Durante uma das muitas viagens de Vargas Llosa, García Márquez teria se encontrado com Patricia, sua esposa. Não se sabe se houve algum envolvimento amoroso ou se o colombiano apenas estava insatisfeito com a guinada política do amigo à direita. O que se imagina é que Patricia contou sobre o encontro ao marido, que reagiu com a agressão. Era o fim de uma bela amizade. García Márquez era padrinho de casamento do casal, cujo filho havia sido batizado em sua homenagem: Gonzalo Gabriel Llosa.