Um processo envolvendo a eventual imunização de Jair Bolsonaro contra a Covid — dado que ainda é desconhecido — estampa a dificuldade do governo em lidar com informações oficiais e a lei que garante a divulgação dos documentos em nome do interesse público. Lotado na chefia do Gabinete da Secretaria de Acesso à Informação, vinculada à Controladoria-Geral da União (CGU), Marcio Camargo Cunha Filho, que chegou a integrar a equipe de transição do governo Lula na área de transparência, foi punido pelo órgão após investigação interna comprovar que o servidor público federal acessou indevidamente o sistema e passou a jornalistas documentos internos referentes ao cartão de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro. O vazamento ocorreu ainda em dezembro, mas a apuração interna só foi concluída e tornada pública na última semana, no Diário Oficial da União. A ISTOÉ apurou com exclusividade que os conteúdos acessados e repassados de maneira indevida pelo servidor tratam de dois pareceres elaborados pela CGU sobre a divulgação dos dados vacinais do ex-titular do Palácio do Planalto em resposta à demanda pública feita via ouvidoria.

Conforme apurado pela reportagem, no processo em questão, a CGU tomou conhecimento, por meio de demanda da imprensa recebida em 15 de dezembro, de que duas minutas de documentos internos com pareceres sobre a questão da divulgação das vacinas do ex-presidente haviam chegado a um jornalista de O Estado de S. Paulo. Dias depois, o jornal revelou o conteúdo dos pareceres. Porém, de acordo com a Controladoria, o servidor responsável pelo repasse das informações não tinha autonomia para transmiti-las e violou a própria Lei de Acesso à Informação (LAI) ao burlar dispositivo que diz: “O direito de acesso aos documentos ou às informações neles contidas só serão assegurados com edição de ato decisório respectivo”. Como as minutas vazadas ainda não haviam sido assinadas nem submetidas à chefia, os pareceres constavam como “acesso restrito” e, portanto, não poderiam ter sido divulgados a terceiros.

Diante da clara violação da legislação, a CGU instaurou o procedimento interno para apurar quem, com acesso ao sistema, teria burlado o trâmite legal e vazado os dados ainda sigilosos. A apuração indicou que o autor da infração havia sido o chefe de gabinete da própria Secretaria de Acesso à Informação. O órgão afirma que a conduta do servidor foi enquadrada como descumprimento de deveres estabelecidos no estatuto do funcionalismo público federal e à LAI, em ação agravada pela utilização indevida de informação a que tenha conhecimento em razão do cargo que ocupava. A violação foi considerada pelos corregedores como passível de proposta de celebração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) — procedimento administrativo voltado à resolução consensual de conflitos em caso de infração disciplinar de “menor potencial ofensivo”. O TAC pode resultar em uma mera advertência, como neste caso, ou até em suspensão por 30 dias das atividades.

A ISTOÉ teve acesso ao TAC firmado por Cunha. O documento destaca que o servidor, além de não ser responsável pela condução do processo sobre a divulgação de pareceres relativos à publicidade dos dados vacinais de Bolsonaro, foi o único a extrair arquivos das minutas em todo o histórico da manifestação e que os conteúdos acabaram subsidiando a matéria jornalística. No procedimento interno, o corregedor-geral Ricardo Wagner de Araújo defendeu que “restou comprovado o descumprimento dos deveres de ser leal às instituições a que servir, de observar as normas legais e regulamentares e de guardar sigilo sobre assunto da repartição, bem como a indicação de utilização indevida de informação a que tinha acesso em razão do exercício da atribuição de seu cargo”. Relativo à pena ao infrator, Araújo decidiu que, apesar de passível de suspensão, a análise do caso demonstrou “não haver indícios de outras situações que justifiquem a majoração da penalidade”. Em contrapartida, ele obrigou o funcionário público a apresentar certificados de participação em cursos, seminários e palestras sobre direitos e deveres do servidor público, ou sobre ética no Serviço Público federal, que comprovem, no mínimo, 20 horas de capacitação. Além disso, o corregedor também determinou que Cunha passasse a ter seus acessos a processos eletrônicos monitorados pela sua chefia imediata, mediante a extração de relatórios a cada seis meses, pelo prazo de um ano.

Dilema que se arrasta

À época do vazamento das minutas, a CGU vivia uma verdadeira disputa interna entre os controladores, que divergiam sobre divulgar ou não o cartão de vacinação de Bolsonaro. Não à toa, em ato inédito, foram elaborados dois pareceres, um autorizando e outro negando a publicidade — são justamente estes os documentos vazados pelo servidor. Durante o governo do ex-presidente, as informações estavam guardadas a sete chaves, mesmo com ele negando publicamente a imunização contra a Covid. Antes da Controladoria se debruçar sobre o caso, a Secretaria-Geral da Presidência já havia rejeitado acesso às informações sob alegação de que o conteúdo era relativo à vida privada do ex-mandatário.

Em fevereiro, em outro capítulo da novela, o ministro Vinicius Carvalho afirmou ter registros de que Bolsonaro se vacinou contra a Covid e que a imunização ocorreu ainda em julho de 2021, em São Paulo — o ex-presidente, contudo, negou a informação e levantou suspeitas sobre os registros. Um mês depois, a Controladoria-Geral da União decidiu autorizar a divulgação das informações, acatando recurso que contestava a negativa de divulgação das informações. O órgão argumentou que o próprio Bolsonaro fazia questão de tornar público seu “status vacinal”, caindo por terra a fundamentação da proteção dos dados pessoais dele. A resposta sobre a imunização ou não do ex-presidente está nas mãos do Ministério da Saúde. Apesar da pressão política, a pasta reluta em divulgar as informações enquanto não for concluída investigação sobre a lisura dos dados cadastrados.