AUTOBIOGRAFIA
Editora Belas Letras
576 págs.
Preço: R$ 84

O número de documentários, livros e filmes sobre a vida de Miles Davis é quase infinito, mas até hoje a única maneira de conhecê-lo de verdade era por meio da sua música – pelo menos no Brasil. Agora os leitores brasileiros poderão conhecer sua trajetória espetacular por meio de suas próprias palavras: chega finalmente ao País uma versão em português de Autobiografia, obra publicada originalmente em 1989 em parceria com Quincy Troupe.

Dizer que Miles teve uma vida extraordinária é óbvio como uma escala em dó maior. Ouvi-lo contar seus casos, tragédias e reflexões em detalhes, porém, é delicioso como um improviso que dá certo. Apenas ao final das 576 páginas do livro descobrimos como uma combinação única de background familiar, interesse artístico e talento musical foram capazes de forjar um dos músicos mais influentes do século 20.

Miles Davis nasceu em 1926, seis décadas após o fim da Guerra Civil americana, em uma cidadezinha à beira do rio Mississipi, Alton, no estado de Illinois. Seu avô era um contador rico, que terminou enxotado de sua própria fazenda porque seus vizinhos não aceitavam o seu sucesso. “Na cabeça daquelas pessoas, um homem preto não deveria ter tanta terra e tanto dinheiro assim. Isso não mudou muito, as coisas são assim até hoje”, desabafa Miles. Seu pai era um dentista formado em três faculdades e sua mãe tinha casacos de pele e diamantes. O fato de nascer em uma família de posses e, mesmo assim, ser alvo de racismo, moldou definitivamente o seu caráter.

“Eu estudava o que esses músicos faziam, era um cientista do som. Se uma porta rangesse, era capaz de dizer o tom exato da nota” Miles Davis, sobre seus ídolos

O livro reserva um bom espaço à vida pessoal de Miles, mas a maior parte é dedicada, obviamente, à música. Narra a descoberta do trompete na escola, incentivado por seu primeiro professor, Elwod Buchanan. A namorada Irene Birth, que ele conheceu aos 16 anos, o fez ligar para Eddie Randle, líder da banda local Blue Devils. Nos ensaios regados ao som de Duke Ellington, Benny Goodman e Lionel Hampton, Miles aprendeu como se comportar como um líder.

A carreira profissional engatou para valer pouco depois, aos 18 anos, quando foi aceito na tradicional escola de arte Juilliard, em Nova York. Sozinho na metrópole, passou a dividir o dia a dia entre o estudo de compositores eruditos como Igor Stravinsky, Sergei Rachmaninoff e Maurice Ravel, seus favoritos, com as sessões de Be Bop, madrugada adentro no bar Minton’s Playhouse, no Harlem, e na Rua 52. Foi nesse contexto que Miles começou a tocar com duas lendas que transformariam sua vida: o trompetista Dizzy Gillespie e o saxofonista Charlie “Bird” Parker. A decisão de abandonar a Juilliard veio após uma aula sobre música negra: “A professora branca queria ensinar que os pretos tocavam blues por serem pobres e terem de colher algodão. Ergui a mão e disse: ‘meu pai é rico e eu toco blues. Ele nunca colheu algodão, e eu não acordei triste um dia e comecei a tocar blues. É mais profundo do que isso”.

A influência de Charlie Parker levou Miles às drogas. O músico fala com honestidade sobre o drama do vício, inclusive o momento em que se livrou dele: pediu para o pai trancá-lo em um chalé em sua propriedade, de onde só saiu após graves crises de abstinência. Um dia acordou e pensou: “estou limpo”. Voltou a Nova York e gravou o lendário álbum Kind of Blue.

O livro aborda a vida de Miles Davis até 1989, dois anos antes de sua morte, e tem uma boa parte dedicada a sua caótica vida pessoal. Há detalhes do romance com a francesa Juliette Gréco – como ela não falava inglês e ele não falava francês, o amigo Jean-Paul Sartre ajudava na tradução –, e dos casamentos com Frances Taylor, Cicely Tyson e Betty Mabry. Em todos os relacionamentos, amorosos e musicais, Miles se abre com surpreendente humildade – principalmente para quem sabia que era o melhor de todos.