24/02/2023 - 9:30
Os canais de Veneza estão secando e, nos últimos dias, as imagens de casais apaixonados passeando de gôndolas deram lugar à lama e ao caos. Enquanto os barcos encalham a certa hora do dia, e as pessoas começam a sentir as primeiras consequências, o déficit hídrico desenha um futuro grave para a Itália. Uma das estiagens mais fortes que já assolaram o arquipélago urbano está sendo desencadeada por um conjunto de motivos: falta de chuva e nevascas nos Alpes, aumento da pressão atmosférica, influência da lua sobre as marés e mudanças nas correntes oceânicas.
À medida que os termômetros sobem com o aquecimento global, acende o alerta sobre a dependência da geração de água via neve e geleiras. “Soluções locais precisam ser avaliadas, como a construção de reservatórios de armazenamento”, diz Ana Avila, pesquisadora no Cepagri Unicamp. O arquiteto, professor e coordenador de urbanismo na Escola da Cidade, Pedro Vada, esclarece a dimensão sistêmica do caso: “O problema das águas de Veneza não se resolve ali, mas no Vale do Pó, nos Alpes e em uma série de lugares vinculados à cadeia hídrica que atinge a cidade. Não existe a possibilidade de resolver um problema ambiental apenas localmente”. Enquanto os canais que funcionam como ruas secam na cidade, moradores e turistas aguardam os 50 dias de uma precipitação que está longe de ser anunciada.
Vada ressalta a relevância das águas no dia a dia do lugar, para se locomover do mercado ao hospital. Isso porque é nos canais maiores, usualmente não afetados pelo ciclo de cheias e secas, que está o transporte público. A relação cidade-natureza, ele lembra, nem sempre é equilibrada e mostra a fragilidade do planejamento urbano: “Já vi pessoas falando que os canais são grandes obras de engenharia que venceram a natureza. Só que isso não acontece, porque se organiza a cidade de maneira tão dependente, que, quando a água falta, é um caos gigantesco”.
Os gondoleiros, tripulantes das embarcações que percorrem os trechos alagados, já sentem o baque. Em cerca de uma hora, o cenário muda completamente: “Eu entrei às 16 horas em um museu e saí uma hora depois. O canal em que estavam passando gôndolas já tinha os barcos no chão”, relata o azeitólogo e escritor Sandro Marques. Apaixonado por Veneza, é a quarta vez que ele viaja para lá: a primeira foi na lua de mel e agora é nos 25 anos de casamento. Apesar de a experiência local transcender o turismo sobre as águas, a situação assusta: “No canal que fica atrás da casa em que estamos, chegamos a notar que os barcos estavam no chão”.
“Para reduzir o impacto dos eventos extremos, é fundamental a adaptação e todos os agentes precisam estar envolvidos”, fala Ana. Ela destaca o investimento em políticas públicas e pesquisas para contornar questões como essa: “Há que se preparar para o pior e criar mecanismos para que ela não aconteçam”. A estiagem rigorosa, que atinge sobretudo o norte do país mediterrâneo, cruza as fronteiras da capital do Vêneto. O nível da água do Rio Pó, que tem um terço da produção agrícola da Itália em seu entorno, está 61% abaixo do normal para o período.
“Os três maiores lagos da Lombardia apresentam, até o momento, um déficit hídrico preocupante. E estamos apenas em fevereiro, vamos imaginar o que pode acontecer com o avanço do verão”, comenta Federico Rucco, ativista da ActionAid International.
A média nacional de déficit hídrico nos rios e lagos está em -31%. “Para a produção agrícola, o impacto é enorme, pois a estiagem vem se prolongando nos últimos dois anos. Corre-se o risco de a Itália sofrer drasticamente com a questão da segurança alimentar”, alerta a professora Ana. No Trentino, a falta de água começa a influenciar também a produção de energia elétrica.
Quanto à agricultura, Rucco recorda o caso do verão passado, um dos mais quentes e secos desde 1800, quando o governo decretou estado de emergência. Entre dois e seis bilhões de euros foram perdidos, e culturas de grãos, frutíferas e cereais, como o arroz, acabaram prejudicadas. O país é o responsável por mais de 50% da produção do alimento básico na União Europeia. “Isso representa uma séria ameaça não só para o país, considerando que a Itália é a terceira maior economia da Comunidade e que as duas primeiras, Alemanha e França, estão passando por experiências semelhantes”, diz ele.