18/11/2022 - 9:30
‘Não interessa a ninguém viver numa família onde reina a discórdia”, declarou Lula, do alto de um trio elétrico na Avenida Paulista, em 30 de outubro, poucos minutos após vencer Jair Bolsonaro nas urnas. As palavras foram cuidadosamente escolhidas pelo presidente eleito para apelar ao emocional dos brasileiros e posicionar o discurso como um prenúncio da luta que ele pretende capitanear pela pacificação do País. Mas, por ironia, a empreitada em prol da união terá de começar pelo próprio PT, onde as rivalidades internas, a disputa por espaços, a ciumeira do PSB e a precipitada corrida pela sucessão em 2026 criaram fissuras. À primeira vista, não é exagero dizer que o partido serve como perfeito exemplo do velho ditado popular “casa de ferreiro, espeto de pau”.
O mal-estar colocou em lados opostos alguns dos principais nomes do estado-maior do petismo. A presidente do partido, Gleisi Hoffmann, e Fernando Haddad, vivem às turras há anos, mas a situação se agravou na campanha de 2022, ao ponto de a relação ser tachada como “irreconciliável” por aliados dos dois. Eles protagonizaram uma troca de acusações nos bastidores. Haddad entende que teve a candidatura a governador de São Paulo boicotada. Queixa-se, por exemplo, da escassez dos recursos transferidos pela Executiva Nacional — a direção da sigla doou R$ 24,5 milhões, embora o teto para as despesas fosse de R$ 40 milhões. A derrota para Tarcísio de Freitas, frisam os grão-petistas, reduziu o cacife político do ex-ministro para a sucessão de Lula, apesar de não inviabilizá-lo.

Do outro lado, partiram de Gleisi os torpedos que culparam Haddad pelo desempenho “aquém do esperado” de Lula no primeiro turno em São Paulo. A presidente do PT e Aloizio Mercadante compartilharam com colegas a percepção de que, se Haddad tivesse centrado fogo em Tarcísio, apadrinhado político de Bolsonaro, desde o início da campanha, poderia ter freado o crescimento do capitão no maior colégio eleitoral do País e contribuído para a vitória de Lula já em 2 de outubro. “Em uma campanha, não há nada além de articulação de recursos e definição de estratégias. E, nos dois quesitos, houve atrito entre Gleisi e Haddad”, comenta um nome da cozinha do PT.
A rixa é antiga. Começou em 2018, quando os dois disputaram, de forma velada, a bênção de Lula para a disputa presidencial. À época, Gleisi chegou a ser acusada por uma ala do PT de retardar a indicação da cabeça de chapa, depois de o Tribunal Superior Eleitoral declarar o ex-presidente inelegível, para tentar demovê-lo da escolha por Haddad. A briga de egos não terminou naquele momento. A campanha, aliás, foi toda penosa. A pessoas próximas, o ex-ministro reclamava da baixa autonomia para decidir os próprios passos. Mesmo depois da derrota, os dois bateram cabeça por muito tempo na condução da oposição.
Apesar do histórico, sob reserva, petistas pontuam que, agora, a situação é diferente. Dizem que, como eles dividirão a Esplanada, chegou o momento de colocar as desavenças em “stand-by”, sobretudo porque são cotados para ministérios sensíveis e conexos — Gleisi pode assumir a Casa Civil, enquanto Haddad tende a ocupar Fazenda, Planejamento ou Infraestrutura. Lula, frisam os mesmos nomes, não aceitará uma guerra aberta. “Eles não vão sair de mãos dadas, mas não trocarão socos como já fizeram”, completa.
Não é apenas com Haddad que Gleisi enfrenta dificuldades. O clima está azedo, ainda, com Mercadante. Em meio ao mal-estar, os corredores de Brasília viraram palco de uma guerra de versões. Do lado de aliados de Gleisi, argumenta-se que, com perfil “centralizador”, Mercadante tenta minar, a partir da coordenação técnica da transição, a autonomia da presidente do PT, que cuida da articulação política. Os mesmos petistas apontam um “ar de superioridade” e “arrogância” de Mercadante, o qual, segundo avaliam, parece ter deixado a iminência do poder lhe subir à cabeça ao se reabilitar politicamente, depois de anos alijado da entourage petista por ser visto como corresponsável pela crise que culminou no impeachment de Dilma Rousseff. A partir de 2023, Mercadante deve ascender ao Itamaraty ou ao Planejamento.

Aliados do ex-ministro rebatem as declarações. Asseguram que a relação com Gleisi tornou-se difícil porque a petista “não aprendeu com erros do passado” e segue tomando decisões sem, antes, consultar o coletivo. A deputada sofre críticas não somente de manda-chuvas do PT, mas também de colaboradores. Intelectuais próximos do partido não ficaram satisfeitos, por exemplo, com o episódio em que, em um gesto aos evangélicos, ela topou preservar o termo “Família” na nomenclatura oficial do Ministério dos Direitos Humanos. Os estudiosos defendiam a abolição da palavra, para afastar a imagem empregada à pasta pelo bolsonarismo. Na semana passada, Gleisi ouviu reclamações ainda por ter dito ao bispo Edir Macedo que o PT “dispensa” o pedido de desculpas dele, enquanto a sigla tenta emplacar o discurso de pacificação. Mesmo para aliados, ela deveria ter optado pelo silêncio, e não respondido ao religioso com um sobressalto.
No meio do tiroteio está Geraldo Alckmin, a voz de comando sobre a transição. Apesar do tom ameno e da aversão a “disputas por território”, o pessebista não escapou do fogo amigo. Petistas já fizeram circular a insatisfação com a decisão de Lula de realizar giros internacionais e, na prática, deixar a administração nas mãos do vice-presidente eleito — a estratégia de compartilhamento de poder entre os dois ficou clara logo nas primeiras semanas após a eleição, com a viagem de Lula ao Egito para a COP27 e a Lisboa para encontros bilaterais, enquanto Alckmin toca as negociações do plano emergencial de governo, com plena autonomia. O ex-governador paulista será o gerentão do novo governo.
A insatisfação já forma camadas. As reclamações começaram por causa de uma suposta “falta de transparência” de Alckmin na designação de nomes para a transição. Seguiram em razão da restrição do espaço do PT na equipe do CCBB, para a acomodação de lideranças de outros partidos e espectros políticos e a consequente representação do centro democrático que elegeu Lula. Estenderam-se, depois, em decorrência da guarida garantida por Alckmin a pessebistas no garimpo por cargos no primeiro e segundo escalões do governo. E terminaram com a demonstração de insatisfação pelo protagonismo daquele que já ocupou o papel de adversário histórico do partido. Petistas rejeitam o empoderamento de Alckmin porque não querem enxergá-lo como candidato à sucessão, em 2026.
A gana do petismo pela hegemonia não é novidade. Gleisi a estampou em 2020. À época, Lula ainda estava preso em decorrência da condenação no caso do tríplex do Guarujá e o partido discutia as alternativas para 2022. Na esquerda, espalhava-se a percepção de que uma candidatura alternativa, de fora do PT, poderia ser a melhor opção, uma vez que a aversão à sigla ainda era latente. A deputada, então, deu uma entrevista na qual, com pitadas de soberba, indagou quem tinha “votação expressiva no Brasil” para desbancar o partido na cabeça de chapa. “Às vezes as pessoas dizem assim: ‘Fulano seria melhor para o 2º turno’. Só que para chegar no 2º turno precisa passar pelo 1º. E voto, capital eleitoral, é algo que se acumula da sua vivência, da sua disputa política, do seu posicionamento… É uma construção. Política não é um ato de abrir mão”, disparou.
Não à toa, infere-se em Brasília que todos os atos de possíveis presidenciáveis, à exceção de Haddad, por óbvio, serão vistos com “ressalvas” pelo PT. O partido trabalha com os nomes de três “forasteiros” que buscarão, por meio dos cargos no governo, se cacifar para a corrida pelo Palácio do Planalto em quatro anos — além de Alckmin, estão na lista Flávio Dino, cotado para o Ministério da Justiça e Segurança Pública, caso a pasta não seja desmembrada, e Simone Tebet, aventada para o Ministério do Desenvolvimento Social, que cuidará do Bolsa Família. Os mais otimistas e descolados do clima de rixa vêem na presença do quarteto no governo a chance de uma “disputa por resultados”, o que pode puxar as taxas de aprovação da gestão Lula para o alto. Resta saber se todos sobreviverão ao clima de guerra no serpentário que, por ora, não dá sinais de calmaria.