05/02/2021 - 10:20
O médico Luiz Henrique Mandetta, 56 anos, deixou o comando do Ministério da Saúde em abril de 2020, demitido pelo presidente Jair Bolsonaro por causa de seus méritos profissionais e seu apego à ciência. Desde então ele tem sido um observador atento e um crítico ferrenho do governo. Com conhecimento da máquina federal, Mandetta não tem dúvidas de que Bolsonaro comanda hoje uma operação permanente para sabotar qualquer alternativa científica de controle da pandemia. “A cloroquina é uma questão política, não é técnica. Com ela, o governo justifica sua inércia na prevenção, na testagem e na compra de vacinas, que ele sabotou”, disse à ISTOÉ. Por conta disso, o Brasil está agora exposto a uma nova megaepidemia causada pela variante amazônica do coronavírus. Mandetta aposta que o ministro Eduardo Pazuello, diante de tantas barbaridades, tem os dias contados no cargo. Ele acompanhou as eleições que definiram os presidentes do Senado e da Câmara e acha que a escolha do nome do substituto do general virá do Centrão. “Mas a figura que vai dar a cara para o ministério, é secundária.” O Centrão quer dominar toda a estrutura administrativa e ter ministério de porteira fechada.
A queda do ministro Eduardo Pazuello é inevitável?
O Ministério da Saúde é aquele em que há maior facilidade para fazer a substituição. Você tem um ministério hoje sob intervenção militar. Os militares seguem ordens. Todos os cargos são de coronéis, majores, capitães e de generais, como o ministro. Eles saem dali, ganham uma promoção por bravura e abrem espaço. É mais fácil mexer com o Ministério da Saúde do que com o da Educação, por exemplo. No momento não resta dúvida de que o ministro está numa condição muito desconfortável, tomando atitudes controversas, sem apoio político e sem apoio das Forças Armadas para continuar sendo ministro com farda.
O senhor acredita na possibilidade de uma reforma ministerial?
Será uma reforma ministerial feita pelas contingências. Ela não vai ser uma proposta do governo, mas o governo vai gradativamente cedendo. É muito parecido com o que aconteceu no primeiro governo Lula. Se você lembrar naquele momento houve o caso do Zé Dirceu e do Roberto Jefferson. Era o mensalão. E ele estava com uma esplanada praticamente toda petista. Quando ocorreu o mensalão, ele deu um passo atrás e foi, em direção ao Centrão, entregando um volume grande de ministérios. Com a expansão econômica, foi um casamento perfeito. Agora vamos ver como funciona com o cofre vazio.
A indicação para o Ministério da Saúde virá do Centrão?
Lembro muito, na época do governo Temer, que o nome ventilado para o ministério era o de Raul Cutait, um médico excepcional. Mas para todos os cargos embaixo, quem compra, quem executa, quem faz toda a operação do ministério, ele não poderia nomear ninguém. Raul não aceitou o convite. Qual vai ser a figura que vai dar a cara para o ministério, para o Centrão é secundário. O Centrão quer dominar toda a estrutura administrativa e ter o ministério de porteira fechada.
Nas últimas semanas houve o começo da vacinação no Brasil, com muitos problemas, tudo da mão para a boca. Como o senhor vê esses primeiros momentos?
A gente alertava que o governo não tinha um plano para adquirir, nem para abastecer e muito menos para vacinar. Devia ter começado lá atrás, em agosto ou setembro, e preparado as encomendas. As fábricas não estão com vacina na prateleira.Elas trabalham sob encomenda e o mercado está aquecido. O Brasil cometeu uma sucessão de erros. Agora nós só temos a Coronavac e 2 milhões de doses da Oxford-AstraZenec, compradas da Índia para que o governo não ficasse na situação vexatória de só ter a vacina do Butantan. A maior parte das vacinas só chegará no segundo semestre. E temos o outono e o inverno e uma cepa variante no nosso quintal. É uma questão de tempo para ela mostrar a sua virulência.
O senhor acredita que essa nova cepa possa gerar uma megapandemia no Brasil?
O ministro está alegando que o que ocorreu em Manaus é culpa dessa variante, muito mais transmissível. Ele fala que é 3 ou 4 vezes mais transmissível, embora ainda não exista um modelo matemático. Se isso é verdade, uma cidade que fazia cinco mil casos por dia, passará a fazer 15 mil. Com isso, teremos que redimensionar o sistema porque o contágio é três vezes mais rápido. Mas não vejo ninguém falar em preparação para uma cepa três vezes mais transmissível.
Sem contar que o ministério colabora para espalhar a nova variante do coronavírus, certo?
Pacientes de Manaus estão sendo transferidos para todas as capitais brasileiras ao mesmo tempo. A justificativa é que precisamos atender Manaus, o que é legítimo, mas não há plano de biossegurança. Os parentes vão atrás das pessoas internadas. Em João Pessoa testaram alguns desses parentes e 10 pessoas estavam positivas para a nova cepa. A nova variante já está em todas as regiões metropolitanas brasileiras. E isso pode causar uma epidemia sem paralelo em todo o Brasil, pois ela é muito mais transmissível.
Enquanto isso, o governo continua insistindo na cloroquina. É uma obsessão?
Não é obsessão, é diversionismo político. Eles lançaram essa tese, o presidente lançou, pegou a caixa de remédio, falou que era bom. E há um conjunto de pessoas que falam a favor. Politicamente ele diz que faz alguma coisa, dando cloroquina, um medicamento sem eficácia. É uma questão política, não é técnica. Bolsonaro é um sabotador da ciência. O governo fica nessa posição e justifica sua inércia na prevenção, que ele sabotou tanto na testagem como na compra de vacinas, que ele também sabotou. E tem inércia na capacidade de vacinação. Quando você junta as inércias todas, a culpa do governo aflora e, sem argumentos, ele fala: “Use cloroquina”.
A gente está vendo uma atitude irresponsável na sociedade, há festas e desrespeito ao isolamento. Qual é a razão disso?
Primeiro o governo não fez nenhuma campanha nacional. Zero. Quando estava no ministério eu falava com a população através de boletins, mas depois o governo ficou em silêncio, minando qualquer possibilidade de prevenção. O jovem olha e nem perspectiva de vacina ele tem — menores de 20 anos não serão vacinados no Brasil. O que faltam são exemplos, pedidos, união nacional para que o jovem possa fazer sua parte.
Quer dizer que o governo dá um exemplo nefasto?
É devastador e nós estamos falando de um vírus, que tem uma letalidade de 1%. Imagine se tivesse 5%. Aí nós não estaríamos falando hoje de 250 mil mortos, mas de 1 milhão. Se fosse 10% de letalidade, falaríamos de números gigantescos e o governo estaria atuando da mesma maneira.
O Brasil foi considerado um dos piores países no combate à pandemia. A posição é justa?
O sistema de saúde brasileiro está roto. Politicamente, o SUS, que é um tripé, está andando como uma perna e meia, uma dos governos estaduais e meia dos municipais. O governo federal deixou o sistema cair. Um governo começa a fazer uma vacina, outro compra da Rússia, um fala que vai vacinar hoje, outro que vai vacinar na semana que vem. Estamos numa babel, não há liderança, coordenação, não há nada. É cada um por si.
O que significa a vitória do Arthur Lira na Câmara?
Significa uma adesão dos deputados a uma possibilidade de arrancar mais recursos e cargos do governo, fazer um enfrentamento duro com o governo. Bolsonaro elegeu o presidente da Câmara e a fatura vem a galope. Os deputados têm eleições no ano que vem e precisam voltar para suas bases com realizações. A gente vai assistir eles sentarem em cima do orçamento para criar recursos para suas bases. Não é uma vitória política, nem ideológica. É uma vitória da possibilidade de arrancar recursos e cargos.
O trabalho do Congresso vai aumentar? Reformas serão votadas?
Quem vai dar o tom é o governo. Governo forte, Centrão fraco. Centrão forte, governo fraco. É uma via de mão dupla. Foi assim com a Dilma. Esse mesmo Centrão, a mesma base, o tamanho da oposição é o mesmo da época. E o governo Dilma aprovava o que queria. A partir do momento em que ela entrou em conflito com eles, sofreu o impeachment. Tudo dependerá da capacidade do governo de atender o tamanho da ânsia que eles vão ter.
Podemos considerar essa eleição mais um retrocesso?
Acho que essa eleição tira do presidente a válvula de escape que ele usava para justificar sua inércia. Ele não tem mais como justificá-la da maneira que ele justificava, culpando o Congresso. Ele perde essa possibilidade. Mas agora o governo precisa muito do Congresso e o Congresso quer muito estar dentro do governo. Nós vamos assistir ao ápice do toma lá, dá cá.
Assim que eleito, Lira cobrou do governo o auxílio emergencial e a vacinação. Para onde isso aponta?
Aponta para um déficit público em expansão, o terceiro ano de mandato é o ano em que você quer fazer bondades, para ter isso na memória. Esse Centrão sabe capitalizar politicamente, mas a parte econômica vai ser rifada. Paulo Guedes vai ter muita dificuldade de apresentar qualquer tipo de alternativa. Por sua vez, a questão da vacina é muito mais uma questão de vacinação do que da vacina em si. Não adianta comprar a vacina e não ter um sistema de vacinação. E o Ministério da Saúde está muito fraco para fazer esse serviço. Isso sinaliza também que o ministério vai passar por mudanças.
O senhor será candidato à presidência da República?
A primeira coisa que tenho procurado fazer é sair dessa polarização. Eu não quero estar no campo da polarização da extrema direita com a extrema esquerda e vou tentar trabalhar para que as pessoas enxerguem que o caminho não é o bolsonarismo e nem o petismo. Mais de 60% da população não quer esses extremos. É preciso que as forças democráticas encontrem uma forma de mostrar um caminho para a população que contemple uma reunificação do País, um retorno à normalidade das instituições. Vou participar da construção desse movimento, com o que eu consigo colaborar, com a pauta internacional, econômica e da saúde. Entendo que após essa eleição da Câmara e do Senado a gente vai começar a ter massa crítica para poder trabalhar e começar a discutir os problemas com a população.