24/04/2020 - 9:30
O mandato de Jair Bolsonaro já pode ser dividido em duas fases. Até o 19 de abril, havia uma gestão errática, contida pelo Judiciário e norteada por um Congresso reformista. Depois disso, ocorreu uma inflexão, rumo a um governo autoritário, com a intimidação explícita das instituições. Para isso, contou com o apoio de cerca de um terço da população, além do aval de setores militares. Foi isso que se viu nesse dia, quando grupos bolsonaristas organizados promoveram manifestações e carreatas em todo o País pedindo o fechamento do Congresso e do STF. O ato teve seu ápice em Brasília, com o presidente montado na caçamba de uma caminhonete. “Temos um novo Brasil pela frente. Todos, sem exceção, precisam ser patriotas. Acabou a época da patifaria. Você têm a obrigação de lutar pelo País de vocês”, declarou. O discurso ocorreu no dia do Exército, em frente ao Quartel-General de Brasília, um local simbólico. Dessa forma, o presidente quis deixar claro que estava conclamando as Forças Armadas a se unirem ao povo em torno de si mesmo — uma alusão óbvia a um golpe. No dia anterior, já tinha investido contra o STF. Diante de apoiadores religiosos, fez alusão aos políticos que “querem abalar a Presidência”. “Não vão me tirar daqui, tenho certeza”, disse apontando para a sede do Judiciário. Queixou-se da decisão do STF que garantiu a autonomia para prefeitos e governadores promoverem a quarentena: “Estão fazendo o que bem entendem”.

Os atos do domingo foram organizados com o pretexto de apoiar o presidente diante de seus projetos malogrados no Congresso, ainda que a culpa seja da própria desarticulação governista, e de sua cruzada contra as orientações médicas pelo isolamento social, seguidas pelos governadores e prefeitos. Foi a maior aglomeração provocada pelo mandatário desde o início da pandemia. As carreatas ocorreram em várias capitais, inclusive em frente aos hospitais lotados com pacientes da Covid-19 — daí ganharem o apelido, apropriado, de “carreatas da morte”. Ao mesmo tempo, milícias digitais promoveram nas redes sociais o maior ataque já sofrido pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e pediram, em São Paulo, a destituição do governador João Doria — o líder informal dos gestores que estão na linha de frente da luta contra a pandemia pelo País.
STF e congresso reagem
A dimensão e ousadia das manifestações provocou repúdio e mobilizou líderes do Congresso, membros do STF e militares da reserva e da ativa, temerosos com a associação das Forças Armadas ao apelo golpista. “É assustador ver manifestações pela volta do regime militar, após 30 anos de democracia”, divulgou Luís Roberto Barroso, ministro do STF. Seus colegas Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello também criticaram os atos. “Lamentável que o presidente da República apoie um ato antidemocrático, que afronta a democracia e exalta o AI-5”, declarou o governador João Doria. Maior alvo dos ataques virtuais, Rodrigo Maia quis demonstrar tranquilidade: “No Brasil, temos de lutar contra o corona e o vírus do autoritarismo. Não temos tempo a perder com retóricas golpistas. Não há caminho fora da democracia”. A aparente serenidade do presidente da Câmara não traduzia o que acontecia nos bastidores. O clima em Brasília fechou. Diversos parlamentares e autoridades se reuniram na casa de Maia, que conversou com interlocutores do presidente. Generais da reserva, como Eduardo Villas Bôas e Sérgio Etchegoyen, ex-ministro do governo Temer, foram chamados para intervir. Demonstraram aos ministros de farda o desconforto com as imagens de Bolsonaro em frente ao QG do Exército. O presidente do STF, Dias Toffoli, questionou o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, de quem é próximo (foi seu assessor no STF). O militar reafirmou o compromisso do presidente com a Constituição, e minimizou o seu discurso.

Ocorre que foi um ataque contra as instituições, e com a bênção dos militares do Planalto. O ministro da Defesa e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) chegaram a ser convidados por Bolsonaro para acompanhá-lo em frente ao QG do Exército. Não foram, mas avalizaram o chefe. Acham que o presidente está sendo acuado pelo outros Poderes. Depois, com a péssima repercussão, reuniram-se com o presidente, em encontro que juntou Azevedo e Silva, Ramos, Walter Braga Netto (Casa Civil) e Augusto Heleno (GSI). Na saída do Palácio do Alvorada, perguntado sobre o tema da conversa, o chefe do GSI foi lacônico: “Falamos sobre futebol”. Nos dias seguintes, ocorreram reuniões tensas e tentativas de distensão. Ramos, que é responsável pela interlocução com os parlamentares, tentou marcar uma reunião de apaziguamento com Rodrigo Maia. Este sugeriu incluir na conversa o general Braga Netto, de quem é próximo. A conversão não prosperou. Enquanto isso, a reação contra o presidente continuava. Vinte de 27 governadores divulgaram uma carta aberta “em defesa da democracia”. Parlamentares de quase todos os partidos repudiaram a ação do presidente. A Frente Nacional de Prefeitos divulgou uma nota condenando o “atentado à democracia”. Dias Toffoli, sem citar Bolsonaro, declarou que o autoritarismo e os ataques à democracia são gestos “nefastos”. “Não é possível admitir qualquer solução que não seja a dentro da institucionalidade e do Estado Democrático de Direito.” Afirmou isso em evento que reunia a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), entre outras entidades.
Diante do clima conflagrado, a reação de Bolsonaro foi a mesma que demonstra sempre que avança o sinal. Culpou a imprensa e negou qualquer intenção antidemocrática. “No que depender do presidente Jair Bolsonaro, democracia e liberdade acima de tudo”, afirmou. “O pessoal geralmente conspira para chegar ao poder. Eu já estou no poder. Já sou o presidente da República”, disse. Seguindo o script do recuo estratégico, repreendeu um apoiador que pediu o fechamento do STF. “Esquece esta conversa de fechar. Aqui não tem fechar nada, dá licença aí. Aqui é democracia, respeito à Constituição brasileira. E aqui é a minha casa e a tua casa, então peço que, por favor, não se fale isso aqui”, afirmou. No fim do dia, em ação coordenada, o ministro da Defesa soltou um comunicado pacificador: “As Forças Armadas trabalham com o propósito de manter a paz e a estabilidade do País, sempre obedientes à Constituição Federal”. Uma reação pequena demais, tarde demais.
Militares endossam
No episódio, os militares palacianos pela primeira vez endossaram uma incitação contra a ordem democrática. E foi também a primeira vez que ocorreu uma reação no campo jurídico capaz de trazer problemas sérios para o presidente. O procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu autorização ao STF para investigar os atos pró-golpe, citando o artigo 23 da Lei de Segurança Nacional, que trata da subversão da ordem política e social. Sorteado, o ministro Alexandre de Moraes rapidamente acatou o pedido, ressaltando que o episódio é “gravíssimo”. Aras não incluiu o presidente entre os investigados, por não haver indício da sua participação na convocação das manifestações. Mas, com o desenrolar das investigações, pode ser incluído, assim como empresários que o apoiam. Bolsonaro deu azar. Já está a cargo de Moraes outro inquérito que investiga ataques virtuais ao STF, que soma-se agora ao segundo inquérito como uma ameaça concreta para o presidente.
Segundo especialistas, outra peça é ainda mais danosa a Bolsonaro. Trata-se de um mandado de segurança protocolado no STF por um ex-assessor da ministra do STF Rosa Weber e um ex-conselheiro da OAB. Os advogados Thiago Santos Aguiar de Pádua e José Rossini Campos do Couto Correa acusam o presidente de quebra de decoro, um crime de responsabilidade passível de impeachment. Solicitam que algumas atribuições do presidente sejam transferidas para o vice, Hamilton Mourão, assim como a nomeação de ministros, a sanção de leis e a decretação dos estados de defesa e sítio. Pedem ainda que o presidente seja impedido de promover aglomerações e apresente seus exames de coronavírus. Esse último ponto toca em outro nervo presidencial, já que há outro pedido pendente da Câmara nesse sentido, com base na Lei de Acesso à Informação. O ministro Celso de Mello vai relatar o processo protocolado pelos advogados, o que é outra má notícia para o presidente — é um dos nomes mais críticos a ele no STF.

de isolamento contra a pandemia
Além do descrédito crescente no País, Bolsonaro já é motivo de repulsa na comunidade internacional, e coleciona denúncias em tribunais multilaterais. Por enquanto, no Congresso e no meio político, a percepção majoritária é que não existem ainda as condições para o início de um processo de impeachment, apesar dos seus crimes de responsabilidade em série. Sem as condições certas, uma articulação dessa natureza pode até fortalecer o presidente. Mas o humor do Congresso está mudando. Já há 24 pedidos de impeachment na Câmara, o último deles de iniciativa do ex-governador Ciro Gomes (PDT), protocolado na última quarta-feira, 22. Já outra ação de partidos de esquerda para o impedimento tem pouca chance de progredir pelo descrédito do PT, enredado em seus próprios crimes. Porém, está claro que não é mais possível aceitar passivamente a marcha golpista. Bolsonaro precisa ser impedido pela ação dos outros Poderes. Nesse sentido, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, foi lúcido, citando Martin Luther King: “Pior do que o grito dos maus é o silêncio dos bons”. É hora de reagir. As supostas loucuras de Bolsonaro ocorrem com método. Assim, tem avançado cada vez mais em sua escalada antidemocrática, que agora prega explicitamente a ruptura institucional. O bolsonarismo segue a cartilha do chavismo, na Venezuela. Como Bolsonaro, o ditador Hugo Chávez também era um oficial medíocre que pregava a sublevação, tendo sido preso e expulso da corporação. Não era levado a sério. Suas bravatas foram minimizadas, enquanto avançava na cooptação do Exército, na intimidação dos opositores e no recrutamento de milícias, até materializar o autogolpe — quando o mandatário, eleito, esmaga os outros Poderes. É disso que se trata agora, com uma ironia da história. Dividir e partidarizar o Exército sempre foi o sonho da esquerda no Brasil. O atual presidente está perto disso.
O impeachment é traumático, mas transigir com a escalada bolsonarista pode ter um custo muito maior. No começo dos anos 2000, a oposição, na época encarnada por Fernando Henrique Cardoso, acreditava que Lula não deveria ser afastado diante do escândalo do Mensalão, de compra de parlamentares. Ele deveria “sangrar”, para se enfraquecer. Jogo jogado. Lula foi poupado e se fortaleceu. Os 13 anos do PT levaram ao Petrolão e a uma nova crise institucional, com a ruína econômica e a eleição de um capitão do baixo clero saudoso do regime militar. O País não deveria repetir seus erros. Aos poucos, Bolsonaro concretiza seu sonho caudilhesco. Como ensinou Hannah Arendt no clássico Eichmann em Jerusalém, as populações que se mostraram mais respeitosas e flexíveis foram as mais devastadas pela ascensão nazista. Como numa fábula orwelliana, está em curso um golpe em câmara lenta. Em uma frase lapidar sobre a recorrente tentativa de militarização da política brasileira, o marechal Castello Branco, em plena ditadura, ironizou as “vivandeiras alvoroçadas” que ao longo da história vêm sempre “bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar”. Pois as vivandeiras estão aí. À luz do dia, buzinando em frente aos hospitais, desafiando as autoridades em plena emergência sanitária, pregando o fechamento do Congresso e do STF, lideradas pelo presidente. Até quando?