O deserto de Atacama tem a maior parte de sua extensão dentro do Chile, embora seus limites avancem por Argentina, Bolívia e Peru. Suas paisagens misturam deserto árido, salinas, alguns vulcões, lagoas, vales de vegetação farta, cânions e gêiseres. Hotéis e resorts na borda do deserto atraem mochileiros, arqueólogos, astrônomos, fotógrafos, alpinistas, motociclistas e toda sorte de aventureiros. E esses visitantes às vezes são surpreendidos pela visão impressionante de montanhas de lixo descartado nesse paraíso turístico, numa área que os prefeitos da região já chamam de “lixão do mundo”.

Milhares de carcaças de carros enferrujadas e empilhadas. Toneladas de roupas amontoadas em montanhas de tecido ou enterradas a poucos metros da superfície. Pneus, em boa parte queimados, exalam um mau cheiro que se espalha por quilômetros. “É como se estivéssemos cercados por latas de lixo gigantes”, lamentou Patricio Ferreira, prefeito de Alto Hospicio, nas cercanias do Atacama. Mas, para entender porque áreas do deserto formam um lixão global, é preciso dirigir o olhar a outra cidade do norte chileno, Iquique.

GARIMPO Famílias procuram roupas em boas condições no lixão de Atacama para serem revendidas: negócio informal (Crédito:MARTIN BERNETTI)

Todo ano, cerca de 40 mil toneladas de lixo são armazenadas no deserto. Fazem parte de lotes de produtos que vieram dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia para serem revendidos internamente e a outros países da América Latina. As cargas entram em território chileno pela Zona Franca do Porto de Iquique, centro de comércio livre de impostos. Anualmente, quase 60 mil toneladas de roupas, novas ou de segunda mão, são importadas por empresas da região. O Chile é o maior importador de roupas usadas da América do Sul. No país, o descarte de têxteis é proibido. Por isso, quando os vendedores percebem que não terão sucesso na revenda desses itens, os transportam para regiões clandestinas.

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As montanhas de roupas se transformaram em ponto de parada para imigrantes ilegais. Eles aproveitam a área sem fiscalização do Estado para construir moradias improvisadas e juntar mercadorias para revender, ficando mais vulneráveis aos materiais tóxicos liberados pelos resíduos no solo e no ar. “Tudo o que essas pessoas usam ou tocam pode estar contaminado por microplásticos, desde a comida até a cama”, afirma o professor de Química da Universidade Presbiteriana Mackenzie Filippo Fogaccia. “Também as tintas e corantes das peças podem ser maléficos.” Estima-se que esse problema da poluição do Atacama exista há 15 anos. Com o passar do tempo, o desgaste do lixo libera microplásticos que prejudicam a vida não somente das pessoas, mas também dos animais que participam desse ecossistema já frágil.

Nos mais de 100 mil km2 afetados pela poluição, os transportadores muitas vezes queimam ou enterram os materiais, o que leva produtos químicos à atmosfera, em gases tóxicos, principalmente os originários de peças de poliéster. “É o tecido mais comum nas roupas, é leve e barato”, explica Juliana Picoli, pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas. “Derivado do petróleo, quando queimado emite mais poluentes do que os outros.”

Picoli alerta que o destino final das peças não é o único fator de preocupação, porque todas as etapas da produção de roupas representam um impacto enorme ao meio ambiente. “Temos que considerar a utilização de agrotóxicos no cultivo dos tecidos, como algodão, por exemplo, além da água para as plantações e da energia para transformá-los e limpá-los”, afirma. Ela explica que o fator que está gerando esse descarte exagerado de roupas é o chamado fast fashion. “Esse modelo de produção fabrica roupas com pouca durabilidade e em condições sociais precárias. Por durarem menos, são mais baratas e produzidas em maior quantidade. As pessoas descartam e, consequentemente, compram mais.”

No caso dos carros, eles são frequentemente enviados para vizinhos latino-americanos, como Paraguai e Peru. Os que ficam no Chile são muitas vezes abandonados nas ruas e acabam tendo o mesmo fim que as roupas: o deserto. Inúmeros processos por descaso ambiental já foram abertos contra o Estado chileno, que passa atualmente pela burocracia governamental para aprovar leis de responsabilidade para importadores e para fiscalizar a área.

*Estagiária sob supervisão de Thales de Menezes