16/09/2022 - 9:30
Em seu primeiro mandato, como vereador, no Rio de Janeiro, em 1988, Jair tinha um Fiat Panorama, uma moto e dois terrenos em Resende, interior do Rio. Em entrevista resgatada da época, o recém-eleito faz críticas ao número de funcionários da Câmara: “Acho um absurdo que cada vereador tenha a seu dispor dezoito assessores. Minha primeira atitude será elaborar um projeto que diminua em 50% esse número”. Sua bandeira era o ataque aos “funcionários-fantasmas”. No entanto, ele não apenas não fez nada a respeito, como mudou de ideia ao ser eleito deputado, dois anos mais tarde: nomeou seu sogro à época, João Garcia Braga, pai de sua ex-mulher, Rogéria. “Seu Jó”, como era conhecido, morava em Resende, a duas horas do suposto trabalho.
Se todos os eleitores tivessem acesso ao livro O Negócio do Jair, da jornalista Juliana Dal Piva, certamente o resultado das urnas seria outro. A riqueza de detalhes sobre o esquema de corrupção e desvio de dinheiro público comandado por Jair Bolsonaro e seguido por seus filhos e ex-mulheres há décadas impressiona por diversas razões todas elas chocantes, mas principalmente porque vai na direção diametralmente oposta ao discurso do candidato, que garante ser contra a corrupção. Apesar de muitas informações contidas na obra já serem do conhecimento do público, graças ao trabalho de outros órgãos investigativos e veículos da imprensa, o livro é uma bomba.

Rogéria, primeira ex-mulher de Jair, foi a primeira familiar a entrar para a política depois dele. Em 1992, usando o nome “R. Bolsonaro”, conquistou uma vaga na Câmara Municipal do Rio. Aos poucos, a mãe de Flávio, Carlos e Eduardo passou a tomar suas próprias decisões, contrariando o marido. A briga levou à separação: “Nunca bati na ex-mulher. Mas já tive vontade de fuzilá-la várias vezes”, disse Bolsonaro na época. Não agrediu Rogéria, mas um assessor dela que distribuía santinhos na eleição seguinte não teve a mesma sorte: Gilberto Gonçalves foi espancado por três homens, que torceram seus braços, o algemaram e o levaram para a delegacia. “Isso prova o desequilíbrio mental e psicológico do deputado Bolsonaro”, acusou. Separada, a ex-mulher comprou um apartamento na Zona Norte do Rio, onde morava com os três filhos, por R$ 95 mil – em “moeda corrente”. Foi o primeiro imóvel quitado com dinheiro vivo, início de uma prática que se tornaria rotina para o clã Bolsonaro ao longo das três décadas seguintes.

Jair se casou então com uma de suas assessoras, Ana Cristina, que mais tarde daria à luz Jair Renan, o filho 04. A entrada em cena dessa nova personagem tornou um esquema mambembe em profissional. A prática de “rachadinha”, divulgada à exaustão pela imprensa, tornava-se uma operação extremamente rentável, até porque passava a contar com os valores devolvidos pelos assessores de Flávio e Carlos, que também entraram para a política seguindo os passos do líder, Jair. Após dez anos, milhões de reais desviados e inúmeros imóveis comprados com dinheiro vivo, o declínio do relacionamento com Ana Cristina é narrado com um tom que lembra a ruptura entre líderes de uma quadrilha de mafiosos. Desconfianças, acusações e chantagens entre Jair e os parentes de Ana Cristina, muitos deles empregados como assessores, eram parte do dia a dia da família. Para completar, Flávio, que já havia ganhado “brilho” político próprio, exigia sua independência. Uma coisa era ser controlado pelo pai; outra, bem diferente, era ter a madastra cuidando do seu dinheiro. Veio a separação inevitável e, com isso, surge em cena uma nova jovem assessora: Michelle. Desta vez, no entanto, Jair não arriscou: casou-se com separação total de bens.
Entre os personagens secundários, que não carregam o sobrenome “Bolsonaro”, o mais presente é Fabrício José de Queiroz. Amigo de Jair desde os anos 1980, quando se conheceram no 8o Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista do Exército, Queiroz virou o faz-tudo da família, orientando funcionários sobre os salários que deveriam ser devolvidos e cuidando de tudo que era visto como “trabalho sujo”. Envolvido em uma série de episódios violentos ao longo da carreira como policial militar, foi o responsável por apresentar ao clã uma série de milicianos e assassinos de aluguel, como Adriano da Nóbrega, morto em fevereiro de 2020.

Ao longo de quatro anos, Juliana realizou mais de cinquenta entrevistas e reuniu mais de mil páginas de documentos. Pelo trabalho, chegou a receber ameaças do advogado da família, Frederick Wassef, outra figura que emerge das sombras sempre que os Bolsonaro sentem o cerco da Justiça se aproximando. Bolsonaro não aceitou ser entrevistado, tampouco Flávio, Carlos ou Eduardo. Seria bom ouvir o que eles têm a dizer sobre O Negócio do Jair.
“A casa em Angra dos Reis se tornou um refúgio para Bolsonaro e cenário de histórias que ilustram a personalidade do capitão. Em 1999, ele chamou um grupo de familiares e amigos para passar o fim de semana. Assim que os convidados chegaram, Cristina os recebeu e mostrou a casa. Pouco depois, o anfitrião chegou. Vestia apenas uma sunga, na qual havia pendurado uma pistola. Debochado, disse: “A Cristina apresentou a casa e agora eu vou apresentar as armas”. Em seguida desfilou pela sala e mostrou outra pistola, guardada em cima do móvel da TV. Depois guiou os visitantes até a cozinha – em cima da geladeira, outra arma. Ao fim do tour, disse que estava recebendo ameaças depois que atacou o presidente Fernando Henrique Cardoso no programa Câmara Aberta,da TV Bandeirantes. (…)
Por isso, mostrava as armas em uma espécie de orientação: “Se acontecer algo, vocês já sabem
o que fazer.”