Há livros que são famosos por conquistar o leitor desde a primeira linha. Na ficção há casos notórios, como a frase “Me chame de Ismael”, em Moby Dick, de Herman Melville, ou “Todas as famílias felizes são iguais, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, que abre Anna Karenina, de Leon Tolstói. Entre as obras de não ficção isso é raro, mas acontece: é o caso de A Incrível História de António Salazar, o Ditador que Morreu Duas Vezes, escrita pelo autor italiano Marco Ferrari. A biografia do tirano português começa com a seguinte sentença: “O império caiu por culpa de Augusto Hilário, um simples e humilde podólogo”. Como largar um livro que começa assim?

O poder de Salazar, que comandou Portugal com mão de ferro por quarenta anos, na mais longeva ditadura da Europa moderna, começou a ruir na manhã de 3 de agosto de 1968, um sábado aparentemente como outro qualquer. Foi nesse dia que o podólogo Augusto Hilário chegou ao Forte de Santo António da Barra, no Estoril, onde o ditador o aguardava. Salazar sofria de desconforto no pé direito desde a infância, quando o fraturara. Pois foi no momento da chegada de Hilário que o império português começou a cair:

Salazar sentou desajeitadamente na cadeira de pano e madeira, levou um tombo e bateu a cabeça no chão. A queda provocou uma hemorragia cerebral. Dias depois, foi internado e operado pelo cirurgião Álvaro de Ataíde. O médico, conhecido expoente da oposição, foi o responsável por abrir-lhe o crânio para estancar a hemorragia. O procedimento foi um sucesso, mas, dias depois, Salazar sofreu um acidente vascular cerebral e entrou em coma. Seus aliados, vendo que a situação era irreversível, promoveram sua substituição. Marcelo Caetano assumiu o poder e a morte do antigo líder, então, passou a ser uma questão de tempo.

Salazar voltou a abrir os olhos e recuperou a consciência. E agora, o que fazer com o temido ditador? Quem teria coragem de lhe dizer que havia sido substituído? Tal qual um conto de Gabriel García Márquez ou Julio Cortázar, criou-se uma situação fantástica. O agora ex-ditador passou a desempenhar um papel de mentirinha, sem saber. Passou a viver cercado apenas por figuras próximas, que haviam sido instruídas sobre o plano. Seus assessores agendavam reuniões, onde era discutido o futuro de Portugal e das colônias de além-mar, de Cabo Verde, na África, a Goa, próxima à Índia. As ordens do ex-líder, no entanto, ficavam restritas àquela sala alheia à realidade, sem serem implementadas. Chegou-se ao cúmulo de imprimir para Salazar um único exemplar do jornal Diário de Notícias, seu favorito, sem as matérias que diziam respeito a Marcelo Caetano. Eram substituídas por anúncios ou textos falsos. O ditador passou a ser vítima da própria censura que criara. O plano seguiu assim por dois anos, quando Salazar, em 27 de julho de 1970, veio a falecer – pela segunda e definitiva vez.

“O império caiu por culpa de Augusto Hilário, um simples e humilde podólogo” Marco Ferrari, autor

Inspiração nazista

O livro não se resume ao bizarro episódio, mas vale-se dele de maneira eficaz como linha condutora da trama biográfica. De maneira correta, Ferrari, um italiano que se especializou na história de Portugal, não manipula o caso para emprestar a Salazar qualquer fiapo de empatia. Ressalta, em diversas passagens, o comportamento criminoso do déspota. Como exemplo, cita a violência de sua milícia particular, a temida PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado). A força não deixa nada a desejar, em termos de crueldade, à polícia nazista, de Adolf Hitler. Salazar, inclusive, contratou o capitão Josef Kramer para ministrar cursos de tortura a seus homens. Conhecido como a “Besta de Belsen”, o alemão era famoso pela selvageria com que tratava os prisioneiros dos campos de concentração. É esse o perfil do poderoso Salazar que, graças a um simples podólogo, viu sua ditadura desabar – bem depois, infelizmente, de perseguir milhares de portugueses.