Não foram poucos os momentos históricos em que a cultura e a criatividade enfrentaram embates decisivos. Basta imaginar o que os pintores sentiram quando a fotografia foi inventada, ou como a chegada da TV impactou o cinema. Em todos esses confrontos, no entanto, os artistas sempre estiveram em primeiro lugar – apesar de enormes, as mudanças sempre ficaram restritas à forma de se expressar. A importância do ser humano na elaboração de obras de arte nunca esteve em discussão. Até agora: o advento da inteligência artificial coloca em risco o próprio papel do homem como criador.

Os exemplos ainda são escassos, mas isso não impede de classificá-los como de fato são: assustadores. Questões que até há pouco tempo eram tratadas como enredos distantes de ficção científica já fazem parte do dia a dia da indústria criativa — e o cenário tende a ficar bastante complexo. Por mais que possa soar distópico, a verdade é que os programadores já conseguem atrair a atenção do público sem precisar de talento algum. Fica mais fácil explicar isso por meio de casos concretos. A banda Oasis encerrou as atividades em 2009, mas seu disco novo acaba de sair. Como isso é possível? O projeto AIsis (trocadilho do nome da banda com as iniciais “AI”, de “artificial intelligence”), lançado pelo grupo Breezer, é um bom exemplo do que pode ser feito com a tecnologia disponível. Fãs do grupo britânico, o Breezer gravou canções instrumentais no estilo de seus ídolos. Na hora de gravar os vocais, no entanto, programaram o computador para criar melodias na linha de Liam Gallagher, o cantor original do Oasis. O resultado foi impressionante e agradou aos fãs. “Honestamente não ligo se isso é ou não Oasis. O que me importa é que vou ouvir esse álbum muitas vezes”, escreveu Agustín Roel, no canal do Youtube. “Sou fã desde 1994 e achei o AIsis incrível! Ninguém vai me fazer acreditar que isso não é o Oasis”, comentou Michael Nelson. O próprio Liam Gallagher elogiou a ideia em sua rede social, dizendo que sua “voz estava ótima”. Resta ver se ele vai manter o bom humor quando souber que não receberá um centavo sequer pelo que foi feito.

AUSÊNCIA Drake: parceria gerada de forma 100% digital (Crédito:Divulgação)

Segundo Ygor Valério, especialista em direitos autorais digitais, o maior risco para a classe artística é econômico. “As gravadoras dependem de produtos. Se o público não perceber a diferença e for mais vantajoso financeiramente lançar canções geradas pelo computador, as empresas certamente seguirão esse caminho”, diz o advogado. “A competição entre máquinas e artistas humanos será cada vez maior.” Outro caso emblemático foi o lançamento de Heart on my Sleeve, parceria entre os cantores Drake e The Weeknd. A música explodiu e atingiu rapidamente milhões de visualizações no streaming. O problema é que nem Drake, nem The Weeknd participaram da gravação: ela foi gerada 100% pelo computador. A gravadora de ambos exigiu sua retirada imediata das plataformas, mas era tarde demais – o hit se espalhou e segue disponível em milhares de sites. Se a tecnologia já é capaz de criar sucessos baseados em artistas consagrados, o que poderá fazer daqui para frente? Provavelmente algum software terá essa resposta antes de nós.

Uma imagem de mentira

A imagem do papa Francisco usando um casaco fashion se espalhou pelo mundo com tanta rapidez que o fato de ter sido concebida por meio de inteligência artificial só foi conhecido dias depois, quando todo mundo já havia tomado a cena como verdadeira. É uma pequena prova do poder que a tecnologia possui para criar imagens perfeitas. O problema, a partir de agora, será diferenciar a realidade da ficção.

PROVOCAÇÃO Pseudomnésia, de Boris Eldagsen: alerta para os fotógrafos (Crédito:Divulgação)

Com o objetivo de chamar a atenção para a questão, o alemão Boris Eldagsen inscreveu um arquivo criado por computador no renomado Sony World Photography, concurso com mais de 200 mil inscritos. Sua obra Pseudomnésia: O Eletricista levou o primeiro lugar, mas o fotógrafo se recusou a receber o troféu: “Competi como provocação, para saber se as competições estão prontas para a chegada da IA. Não estão”. A organização o acusou de “mentir deliberadamente” ao não citar o recurso utilizado.

Não foi a primeira conquista de um fotógrafo virtual: em fevereiro, a imagem falsa de surfistas em ação na Austrália levou o prêmio DigiDirect. Os vencedores haviam inscrito a peça sob o nome de Jan Van Eych, pintor do século 15 e autor da A Adoração do Cordeiro Místico. Era uma piada: a obra é conhecida por ter sido o quadro mais roubado de todos os tempos.