Milenares estruturas geométricas como quadrados e círculos perfeitos escavadas na terra, que podem ser avistadas do céu; grandes aterros artificiais construídos em leitos de rios; evidências de cidades extintas que foram densamente povoadas há milhares de anos. O senso comum pode levar o leitor a imaginar que o cenário para toda essa riqueza arqueológica são terras longínquas habitadas por sofisticadas civilizações que já não existem mais. Pesquisas do arqueólogo Eduardo Góes Neves, no entanto, revelam que, diferentemente do senso comum, os povos indígenas da floresta vinham ocupando a Amazônia de forma exuberante e sofisticada já há pelo menos dez mil anos antes da chegada dos primeiros europeus, no Século XVI.

“Nas regiões do Acre e de Rondônia, nós temos centenas de estruturas geométricas de terra escavadas que são conhecidas como geoglifos, que são super interessantes e que foram construídas por povos indígenas em áreas de floresta”, conta Neves. “São maravilhosas, círculos muito bem feitos, quadrados, centenas deles”. O diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE-USP) elenca ainda outros sinais de sofisticação que são objeto de estudo de sua equipe de pesquisa na região. “Na ilha do Marajó temos grandes aterros artificiais com uma cerâmica maravilhosa, produzida pelos povos que viveram ali. Em Santarém, no Pará, a gente tem o que pode ser a cidade mais antiga do Brasil, ocupada de maneira densa já antes da chegada dos europeus. No Alto Xingu, temos uma rede muito interessante de estradas que foram construídas pelos indígenas antes da chegada dos europeus”, diz. “Em vários lugares da Amazônia, a gente encontra evidências maravilhosas e muito diferentes entre si da capacidade tecnológica das formas de conhecimento dos povos indígenas no passado”.

GEOGLIFOS Na região há centenas de estruturas geométricas escavadas na terra (Crédito:Diego Gurgel/Secom )

O resultado dos anos de pesquisas arqueológicas de Eduardo Neves está reunido no recém-lançado livro “Sob os tempos do equinócio: oito mil anos de história da Amazônia Central”, da Editora Ubu. “A Amazônia é imensa, ainda há muita coisa surpreendente e ainda desconhecida para ser entendida, mas de algum modo as pesquisas realizadas até aqui contribuem para que a gente possa entender melhor os detalhes, a história dos povos que viveram na região central da Amazônia ao longo de 8 mil anos”, explica. “Existe essa ideia no Brasil de que os povos indígenas não têm história, de que ‘índio é uma coisa só’, e na verdade o que a gente percebe é que essa história antiga da Amazônia é muito rica e muito dinâmica”.

Ao longo dos séculos, os povos indígenas modificaram os biomas amazônicos de várias formas, entre as quais merece destaque a domesticação de dezenas de espécies vegetais. Na composição da floresta, a árvore mais comum hoje na Amazônia é o açaí, que é uma espécie que é consumida e manejada há muito tempo pelos povos indígenas. “Não só o açaí, mas outras árvores, como castanheiras, também mostram que a Amazônia foi modificada pelos povos indígenas no passado”, explica. O tipo de solo chamado “terra preta”, formado ao longo dos séculos, também é herança dos povos indígenas.“São solos muito escuros, super produtivos”, ressalta o pesquisador. “Nos trópicos os solos perdem a fertilidade muito rapidamente, por causa das chuvas intensas. Mas os solos de terra preta mantém a fertilidade durante centenas de anos, e por causa disso, hoje em dia eles são procurados para cultivo”.

UTENSÍLIOS Vários povos da floresta detinham tecnologia para produção de cerâmica (Crédito:Divulgação)

Eduardo Goes aponta ainda que é possível aprender, e muito, com o passado. “Se a gente olhar a história do manejo da Amazônia pelos povos da floresta, a gente percebe que essas práticas contribuíram para aumentar o que a gente chama de agrobiodiversidade. A Amazônia é um grande berçário de plantas que são economicamente importantes e que foram domesticadas ao longo dos milênios”, destaca. Por outro lado, ele ressalta que nos últimos 30 anos perdeu-se 20% da Amazônia ­— “para capim, para soja, para finalidades que levam à destruição dessa grande diversidade da floresta, e que em muitos casos não geram riqueza”, diz. “Desses 20% que a gente perdeu da Amazônia, só 15% têm algum uso econômico importante, o resto são terras abandonadas ou degradadas. Então, o contraste entre a relação com a floresta no passado e a relação com a floresta no presente é muito grande”. É proposital a adoção, pelo pesquisador, da expressão história antiga para designar o período objeto dos estudos. “Utilizar o termo pré-história pode trazer a falsa ideia de que não havia história aqui antes da chegada dos europeus e que os povos originários eram povos sem passado”, explica. “Falar em história antiga é muito mais interessante, porque o termo traz a ideia de que os povos indígenas têm sim uma história, que é milenar e muito rica”. Ainda de acordo com ele, conhecer essa história é fundamental para que se conheça direito a história do Brasil — que não começa em 22 de abril de 1500, mas milhares de anos antes.

DEDICAÇÃO Há mais de 20 anos, Eduardo Neves pesquisa a cultura indígena ancestral (Crédito:Divulgação)