Atual secretário especial da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy dirige o Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) e é coautor de uma das principais sugestões de Reforma Tributária discutidas nos últimos anos, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45. Ele é referência sobre o tema no País e já ocupou cargos na estrutura do Executivo em outras gestões petistas. No início do primeiro governo Lula, foi secretário de Política Econômica e também titular da Secretaria Extraordinária de Reformas Econômico-Fiscais, ambas ligadas ao Ministério da Fazenda. Economista, entrou no 3o mandato de Lula com a missão de viabilizar a Reforma Tributária no Congresso. Apesar de ser uma medida necessária e aguardada há décadas, Appy tem enfrentado resistência de alguns setores, como o de serviços e do agronegócio, por entenderem que serão penalizados com um aumento da carga tributária. Appy fala das polêmicas envolvidas na nova emenda e se mostra confiante na aprovação das medidas fiscais ainda este ano. “Após todos esses anos, a sociedade brasileira chegou ao consenso de que nosso sistema tributário atual se tornou totalmente disfuncional e precisa ser substituído”, diz ele.

A Reforma Tributária vem sendo discutida no Congresso há décadas. O sr. está confiante de que o governo vai conseguir aprová-la?
Estou confiante que saia ainda este ano, pois há uma combinação de fatores que contribuem para que a reforma da tributação sobre o consumo seja aprovada. Primeiro, após todos esses anos, a sociedade brasileira chegou ao consenso de que nosso sistema tributário se tornou totalmente disfuncional e precisa ser substituído. Segundo, as centenas de debates realizados desde 2019 sobre as PECs 45 e 110 — pelo Parlamento, setor privado e academia — levaram ao amadurecimento das propostas. Terceiro, pela primeira vez, a Câmara, o Senado e o governo federal estão alinhados quanto às diretrizes das mudanças a serem feitas e estão empenhados em dialogar para alcançar a melhor Reforma Tributária possível. O ponto fundamental é que as disfunções do sistema tributário atual se tornaram tão grandes que o País, como um todo, está perdendo. A correção dessas disfunções terá um impacto extremamente positivo sobre o crescimento da economia. Segundo os estudos disponíveis, estima-se que, com a reforma, o PIB cresça, no mínimo, 12% a mais do que cresceria.

Há duas propostas de Reforma Tributária em tramitação no Congresso. Qual delas tem o melhor modelo?
As versões mais recentes das PECs 45 e 110 são muito semelhantes. Ambas substituem cinco impostos extremamente complexos — PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS — por um ou dois impostos muito simples sobre o valor adicionado (IVA), que é um imposto seletivo sobre produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Há um Grupo de Trabalho na Câmara cuja missão é justamente fazer a mescla desses textos e, ainda, adicionar à nova proposta outros elementos que os parlamentares julgarem pertinentes.

Os setores de serviços e do agronegócio estão temerosos com a alíquota única de 25%. Muitos pagam hoje PIS/Cofins, em média, de 3,65%, uma vez que o ISS é um valor fixo, que independe da receita. Como lidar com essas resistências?
As questões setoriais estão sendo objeto de análise no Congresso, mas é importante que essa discussão seja feita com base em uma compreensão adequada sobre qual é a tributação dentro do sistema atual e sobre qual é o impacto que terão com a Reforma Tributária. Uma das consequências da falta de transparência do nosso sistema atual é que a maioria das pessoas, e das empresas, acha que paga bem menos impostos do que realmente paga. Muitas empresas pensam que só recolhem ao Fisco aqueles impostos destacados nas notas fiscais que emitem para seus clientes. Mas essa é uma ilusão. Na verdade, todos os insumos utilizados por uma empresa de serviços — energia elétrica, telefone, mobiliário, plataformas de venda online etc. — contêm tributos embutidos nos seus preços. Outro problema é que, no Brasil, o imposto compõe a base de cálculo do próprio imposto. Na Reforma Tributária, a alíquota incidirá sobre o preço sem tributos, dando muito mais transparência para a população. Por fim, uma boa parte da preocupação do setor de serviços se deve a uma incompreensão dos efeitos da Reforma Tributária. Um profissional que presta serviços para empresas, por exemplo, será beneficiado pela reforma, pois hoje ele paga uma alíquota baixa, mas não transfere créditos para o tomador dos serviços, nem recupera o crédito sobre seus insumos. Com as mudanças que preconizamos, ele transferirá integralmente o crédito, reduzindo efetivamente o custo líquido para a empresa que contrata os seus serviços.

Por que ninguém fala em diminuir o tamanho do Estado, em vez de aumentar a carga tributária?
A reforma não aumentará a carga tributária total sobre o consumo, que já é muito alta no Brasil. As duas PECs contêm travas que asseguram que a alíquota será calibrada para manter a arrecadação atual como proporção do PIB. O objetivo da reforma é simplificar, dar transparência e tornar o nosso sistema tributário mais eficiente e justo. Isso não significa que não há preocupação com as despesas. O aumento da eficiência dos serviços públicos, visando entregar o máximo possível para a sociedade pelo menor custo possível, é uma das prioridades do governo.

É possível ter alguns setores com tratamento diferenciado?
Essa é uma decisão política a ser tomada pelo Congresso. Sabemos que algumas concessões terão de ser feitas para viabilizar politicamente a Reforma Tributária. O ideal é que haja o mínimo possível de concessões, pois tratamentos diferenciados aumentam a complexidade do sistema e exigem classificações que podem gerar litígio. É importante, ainda, ter em mente dois pontos. O primeiro é que “tratamento diferenciado” não se resume à redução de alíquotas. O segundo ponto é que cada exceção aberta gerará um aumento na alíquota base do IVA para os produtos e serviços não beneficiados.

O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, o chamou de “técnico autoritário” por defender o fim do Imposto sobre Serviços (ISS). Por que acabar com o imposto municipal?
O Brasil é a única economia relevante do mundo que ainda separa a tributação de mercadorias (ICMS) da tributação de serviços (ISS), num contexto em que é cada vez mais difícil separar uma coisa da outra. Por exemplo: uma loja pode vender trator (mercadoria) ou hectares cultiváveis (serviço feito com o trator); colchão (mercadoria) ou consultoria de sono (serviço feito com o colchão); copos impressos por uma impressora 3D (mercadorias) ou a impressão do copo (serviço). A dificuldade de classificar algo como mercadoria ou serviço dá margem à sonegação, aumenta o custo burocrático de apurar e pagar impostos, gera tensões entre estados e municípios e amplia o contencioso tributário. Por fim, é importante deixar claro que não se trata de “acabar com o imposto municipal”, mas sim de prover os municípios, assim como aos estados e à União, de um imposto moderno e de base ampla, que incida sobre todas as mercadorias e serviços.

Há alguma medida em análise para garantir que estados e municípios não tenham perda de arrecadação com a reforma?
Sim. Ambas as PECs propõem transições longas — imperceptíveis para a população — na forma de distribuição da receita tributária entre estados e entre municípios. Na PEC 45, a transição ocorre em 50 anos, por meio de uma redução progressiva da parcela da receita distribuída proporcionalmente à participação atual de cada ente na receita líquida de ICMS e ISS e prevê um crescimento progressivo da parcela distribuída pelo destino. Na PEC 110, a transição é de 40 anos, sendo que nos primeiros 20 anos há a garantia de que a receita atual com ICMS e ISS, corrigida pela inflação, será distribuída conforme a participação de cada ente na receita total e somente o aumento real da receita será distribuído pelo destino. Nos 20 anos subsequentes, ocorre a redução gradual da parcela que repõe o valor real da receita e o aumento gradual da distribuição pelo princípio do destino. E, durante todo o período, 3% da parcela do IBS distribuída pelo destino é utilizada para compensar os entes com maior queda na participação no total da receita. Estudo do economista Sérgio Gobetti mostra que, com o modelo de transição da PEC 110, em 20 anos, considerando uma hipótese conservadora de impacto da Reforma Tributária sobre o crescimento, todos os estados, e praticamente todos os municípios, têm um crescimento da arrecadação maior do que aquele que resultaria da manutenção do sistema atual, supondo que a arrecadação cresce com o PIB.

Secretários de Fazenda dos grandes municípios dizem que vão judicializar uma eventual fusão do ISS com o ICMS. Como o governo responde a isso?
Por iniciativa do ministro Fernando Haddad, criamos, no Ministério da Fazenda, um grupo de trabalho com representantes dos grandes municípios. É absolutamente legítimo, e natural, que haja receio. Estamos ouvindo as preocupações dos municípios e detalhando aspectos da reforma que ainda causam dúvidas. Se mesmo com esse esforço de construção conjunta não houver acordo, e o tema for judicializado, estamos seguros quanto à consistência jurídica da proposta que está sendo construída.

De que maneira a Reforma Tributária pode aliviar a guerra fiscal entre os estados?
A guerra fiscal decorre da tributação na origem, que caracteriza o sistema atual e pela qual parte do imposto permanece no estado de origem. Para atrair empresas, os estados de origem abrem mão do ICMS a que teriam direito, transferindo ao estado de destino o crédito de um imposto que não foi cobrado. O problema é que todos os estados passaram a utilizar essa estratégia, o que tornou a guerra fiscal disfuncional como instrumento de desenvolvimento regional. Ao contrário, o padrão hoje no Brasil é o de que empresas que, por vocação, se instalariam no estado X, mas acabam se instalando no estado Y; enquanto que empresas que, por vocação, se instalariam no estado Y, se instalam no estado X. A consequência não é só um modelo ineficiente de desenvolvimento, mas uma perda de eficiência da produção nacional como um todo, reduzindo o crescimento da economia. Com a adoção do princípio do destino, e a criação do Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR), a Reforma Tributária eliminará a guerra fiscal. Os estados e os municípios menos desenvolvidos passarão a ter recursos orçamentários para investir no fomento a atividades produtivas.