IMPERADOR Aleixo I Comneno: pedido de ajuda para defender a capital Constantinopla (Crédito:Divulgação)

Deus Vult! “É a vontade de Deus”, gritou a multidão após o discurso inflamado do papa Urbano II, em 27 de novembro de 1095, na cidade de Clermont, na França. O pontífice fazia um apelo dramático para incitar homens e mulheres a marcharem por milhares de quilômetros até Jerusalém. Os muçulmanos, “povo estrangeiro rejeitado por Deus, invadiram terras pertencentes a cristãos, destruindo-as e saqueando a população local.” O discurso alcançou seu objetivo: nas semanas seguintes, milhares de pessoas atenderam a convocação do papa e partiram para derrotar as tropas turcas. Era o início da Primeira Cruzada.

A guerra santa que teve início no século 11 está entre os eventos mais conhecidos da história. A saga dos cavaleiros na Cruzada – expressão que designava “o caminho da cruz” – já serviu de inspiração para filmes, livros e inúmeros relatos. Todos eles, até agora, marcados por algo em comum: a versão contada a partir do ponto de vista ocidental. “A história é escrita pelos vencedores”, já dizia George Orwell. Obcecado pelo período, o historiador Peter Frankopan, professor da Universidade de Oxford, na Inglaterra, encontrou contradições nas fontes tradicionais e decidiu pesquisar o episódio sob um ponto de vista diferente. O resultado é o surpreendente A Primeira Cruzada – Um Chamado para o Oriente. Seu ponto de partida foi a complexa obra Alexíada, escrita em meados do século 12 por Ana Comnena, filha do imperador bizantino Aleixo I Comneno. O relato, que descreve o reinado e a carreira política do pai, é redigido em um grego arcaico e rebuscado, o que dificultou sua compreensão e interpretação ao longo dos séculos. Pois Frankopan encarou o desafio e, com isso, fundamentou sua tese: a de que a origem das Cruzadas não surgiu no Vaticano, da vontade de Urbano II. Tudo teria começado graças a uma carta de Aleixo I, que, baseado em Constantinopla, solicitara ajuda para conter os soldados turcos. A ideia soa como uma provocação: as Cruzadas teriam nascido, portanto, no Oriente.

A Primeira Cruzada –
Um Chamado para o Oriente
Ed. Crítica
Preço: R$ 75 (Crédito:Divulgação)

Visão distorcida

Para Frankopan, há duas razões pelas quais a história teria sido distorcida ao longo dos séculos. A primeira é que, detentora exclusiva do poder de registrar em manuscritos os fatos históricos, a Igreja teria valorizado a importância de Urbano II, em detrimento de Aleixo I. Afinal, do ponto de vista político, era mais cômodo para os monges e clérigos responsáveis pela documentação do período valorizar a liderança papal e esconder a importância de um imperador oriental, que era chamado de “trapaceiro” e “perverso” . A segunda razão é a dificuldade que historiadores ocidentais sempre tiveram em relação à pesquisa de arquivos orientais da Antiguidade.

Fundado no século 4, o Império Romano do Oriente foi criado para facilitar a administração das províncias espalhadas pelo Mediterrâneo oriental. Devido à posição geográfica privilegiada, sua capital, Constantinopla, logo se tornou a maior cidade da Europa, com construções arquitetônicas imponentes, riquezas e palácios luxuosos. Essa imponência atraía inimicos, entre eles o poderoso exército turco, que se aproximava perigosamente das muralhas de Constantinopla. Aleixo I, respeitado general que tomara o poder por meio de um golpe militar, aos 25 anos, tinha poucas opções militares diante da força dos inimigos. Restou-lhe enviar um emissário a Urbano II com uma mensagem urgente: “imploro a Sua Santidade, o papa, e a todos os fiéis de Cristo que forneçam ajuda contra os pagãos para a defesa da Santa Igreja, a essa altura quase aniquilada na região de Constantinopla”.

TEORIA Peter Frankopan: pesquisas em grego arcaico para sustentar sua tese (Crédito:Divulgação)

Em meio ao caos na “Velha Roma”, Urbano II viu ali uma oportunidade de ampliar seu poder. Para angariar “guerreiros de Cristo” à expedição a Constantinopla e Jerusalém, o papa ofereceu recompensas: quem fizesse a viagem ganharia vida eterna, um lugar no céu e a remissão dos pecados. “É belo morrer por Cristo na cidade onde ele morreu por nós”, afirmou, no famoso discurso em Clermont. A missão, no entanto, não seria fácil: dos cerca de oitenta mil soldados que partiram da Europa, apenas oito mil teriam chegado a Jerusalém. Mesmo assim, o número foi o suficiente para a captura da Cidade Santa. O sucesso da Primeira Cruzada levaria a um redesenho da geopolítica mundial, onde o Ocidente passaria a consolidar seu poder hegemônico nos próximos séculos. Tudo isso, segundo a teoria de Frankopan, graças à intuição e ao talento político de um imperador oriental.