Responsável pela bombástica sentença que anulou as condenações de Lula na 13ª Vara Federal do Paraná, permitindo a retomada dos seus direitos políticos, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), faz questão de dizer que a sua decisão não absolveu o ex-presidente dos crimes dos quais é acusado e nem invalidou as provas existentes contra ele. “Na declaração de incompetência, não há qualquer juízo de valor sobre o conjunto probatório, tampouco sobre o mérito da acusação (absolvição ou condenação), os quais ficarão a cargo da Justiça Federal do Distrito Federal, para onde os autos foram remetidos”. Em entrevista à ISTOÉ, o ministro diz, no entanto, que foi necessário corrigir os erros processuais: “Justiça não tem nada a ver com justiçamento”. Para o magistrado, apesar de toda a controvérsia, a Justiça não pode admitir que o combate à corrupção se transforme em retrocesso institucional. E ele é categórico: “A Lava Jato não acabou”. Segundo o ministro, não se pode criminalizar a operação. “É preciso abandonar as teorias conspiratórias que imaginam que a Lava Jato seja fruto de uma articulação internacional para derrubar a política tradicional. A Lava Jato não atacou a política, mas os corruptos.”

Ao tomar a decisão de anular as condenações de Lula em Curitiba, o senhor o inocentou ou as provas obtidas na 13ª Vara da Justiça Federal do Paraná continuam válidas?
A controvérsia colocada no habeas corpus é de direito processual e a decisão judicial limitou-se a examinar a competência para processar a ação penal. Em razão da inexistência de conexão entre os fatos atribuídos ao ex-presidente Lula e a causa de atração da competência da 13ª Vara Federal de Curitiba (crimes praticados direta e exclusivamente contra a Petrobras), apenas os atos decisórios foram declarados nulos, o que significa que caberá ao juízo competente do Distrito Federal decidir sobre a possibilidade de convalidação dos atos instrutórios e das provas já produzidas. Na declaração de incompetência não há qualquer juízo de valor sobre o conjunto probatório, tampouco sobre o mérito da acusação (absolvição ou condenação), os quais ficarão a cargo da autoridade judiciária para a qual os autos foram remetidos.

A sua decisão de considerar que a 13ª Vara Federal do Paraná era incompetente para julgar o ex-presidente significa que o ex-juiz Sergio Moro usou critérios políticos ou que houve apenas falhas processuais?
O tema da suspeição do magistrado é objeto do HC 164.493, de minha relatoria, com julgamento iniciado em 4 de abril de 2018 e ainda não finalizado, como é de amplo conhecimento. Há dois anos, quando proferi o voto, consignei que, dos sete fatos indicados pela defesa do ex-presidente, quatro já foram analisados pelo STF nos recursos interpostos contra as decisões que julgaram as exceções de suspeição ajuizadas nas instâncias de origem, encontrando-se acobertados pelo trânsito em julgado. Os três fatos remanescentes são supervenientes ao julgamento das exceções de suspeição e, por isso, não foram nestas tratados. O Supremo não é juízo universal das causas penais em trâmite no País, e deve submeter-se à organização do Poder Judiciário estabelecida na Constituição, respeitando as competências atribuídas aos demais juízes e tribunais. E não se pode perder de vista os ganhos institucionais que a Lava Jato trouxe ao País. Correções de eventuais erros são feitas dentro dos recursos para as instâncias superiores, e isso não afasta centenas de apurações, investigações, condenações e recuperações de ativos financeiros que passa da casa dos bilhões.

Se o ex-presidente foi condenado há cinco anos, com sentença em segunda instância no início de 2018, por que só agora o senhor decidiu que a 13ª Vara do Paraná não era competente para julgá-lo?
A competência da 13ª Vara Federal de Curitiba foi paulatinamente delineada, inicialmente com a retirada de fatos atinentes ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão até, mais recentemente, com a afirmação de fatos relacionados à Transpetro S/A, subsidiária da Petrobras. É preciso entender o caminho que tomou a jurisprudência do tribunal para afirmar, com segurança, que a 13ª Vara Federal de Curitiba detém competência para processar e julgar apenas os fatos que digam respeito direta e exclusivamente à Petrobras, o que não ocorre no caso do ex-presidente, já que as denúncias oferecidas pelo MPF o colocam como figura central na organização criminosa estruturada para a prática de crimes em detrimento não só da estatal, mas também de outros órgãos públicos dos quais se originariam os recursos espúrios supostamente utilizados para pagamento de vantagens indevidas. Se no momento em que a operação foi deflagrada a competência da 13ª Vara ainda estava se firmando, hoje não há dúvidas de que a orientação majoritária do Colegiado caminhou para retirar muitos casos de lá. Não aplicar a jurisprudência, ainda que tenha sido formada contra a minha orientação, seria uma ofensa ao direito à igualdade. Não poderia negar ao ex-presidente o mesmo tratamento que outros políticos em situação análoga receberam.

O senhor tem dito que se o ex-juiz Moro for considerado suspeito a operação Lava Jato vai virar a Mãos Limpas, da Itália, em que os juízes acabaram sendo penalizados e os réus reabilitados?
Ao proclamar a Constituição de 1988, dois cupins da República foram fulminados pelo constituinte: o regime autoritário e a corrupção. A democracia brasileira, após trinta anos de nova Constituição, segue ainda firme, apesar dos ataques e de mentes autoritárias que a desprezam e que desprezam o sistema eleitoral brasileiro. A corrupção teve enfrentamento dentro da legalidade constitucional com a atuação do sistema de Justiça, incluindo Poder Judiciário, MPF, PF, a advocacia na defesa dos legítimos interesses de seus clientes. São três décadas de avanços. Apagar a Lava Jato corresponde ao absurdo de tentar apagar a corrupção confessada, condenada e reconhecida. A complexidade dos fatos criminosos revelados pela Lava Jato não se limita aos feitos processados perante a 13ª Vara Federal de Curitiba, mas envolvem a atuação de várias esferas judiciais e administrativas, dentre as quais o próprio Supremo. Do conjunto de procedimentos deflagrados, foram adotadas inúmeras diligências policiais e providências judiciais de natureza cautelar, com a reunião de acervo gigantesco de informações, algumas das quais obtidas, ainda, em acordos de colaboração premiada, que revelaram rede intrincada de atos ilícitos realizados por agentes públicos, por políticos e por grandes empresários.

Erros foram cometidos?
O resultado do trabalho é medido menos pelo número de condenações do que pelo expressivo sucesso na recuperação de assustadoras quantias desviadas. Essa constatação reforça a credibilidade do aparato das instituições públicas direta ou indiretamente envolvidas, as quais, impulsionadas pelos desafios impostos ao longo dos últimos anos no combate à corrupção, souberam profissionalizar e instrumentalizar o controle público. O que vimos nos últimos anos por meio do trabalho da Operação Lava Jato é, portanto, um longo amadurecer de instituições de controle que, graças à sua autonomia e ao trabalho de servidores dedicados, derem efetividade na apuração dos crimes. Esse aprendizado institucional é muito maior que eventuais erros na condução da operação.

O senhor acredita que isso pode ser uma grande inversão de valores, com os réus livres e os juízes e procuradores criminalizados?
A tarefa da Justiça no âmbito da Operação Lava Jato deve ser a de sempre manter o equilíbrio e a de desconfiar de reduções simplistas. Quando a operação ganhou proporções inéditas, o risco era o de pensar que todo o sistema político estava contaminado. Agora, quando se revelam fatos que tisnam a imagem do sistema judiciário, o risco é imaginar que toda a Lava Jato tenha sido feita para atingir a classe política, como se houvesse um suposto projeto de poder por parte de juízes e procuradores. Precisamos acabar com uma visão ingênua e romantizada da política, mas não podemos cair em teorias conspiratórias. É preciso investigar a fundo tanto as alegações da acusação, quanto as que são trazidas pelas defesas. É preciso, sobretudo, um ambiente sereno, em que tudo isso possa ser debatido livre de revanchismos. A discussão açodada de um problema complexo não combina com a reflexão exigida no aprendizado institucional. Justiça não tem nada a ver com justiçamento.

Ao completar sete anos, o senhor acha que a Lava Jato acabou ou a operação ainda pode sobreviver, já que ainda há muitas ações a serem julgadas?
A Lava Jato não acabou. Recentes números oficialmente divulgados em 10 de março passado, falam por si. No âmbito do STF, há investigações e ações penais em curso, e desde o início da Lava Jato foram homologadas 120 colaborações premiadas e arrecadados cerca de R$ 1,3 bilhão.

O ministro Fux disse que se toda a Lava Jato for anulada a Justiça terá um problema, pois deverá ter de devolver dinheiro aos condenados na operação. Há esse risco?
Espero, sinceramente, que não se chegue a esse ponto. A operação Lava Jato foi e ainda é responsável por um avanço significativo no combate à corrupção. Seus números são impressionantes tanto de denúncias, condenações e colaborações premiadas quanto, principalmente, de recuperação de valores desviados dos cofres públicos. As consequências de eventual anulação da operação são incertas e dependerá dos motivos, da extensão e do alcance da decisão. Temos vários réus confessos, condenados e que celebraram acordos de colaboração premiada. Imaginar qualquer tipo de restituição de valores seria um verdadeiro retrocesso.

O senhor tinha consciência de que a sua decisão mudaria o quadro eleitoral de 2022?
Minhas decisões não são fundamentadas apenas e diretamente em eventuais consequências que possam ter. No caso do ex-presidente Lula, a decisão está fundamentada na garantia da isonomia e do juiz natural. Após ser sucessivamente vencido sobre a redução da competência da 13ª Vara Federal de Curitiba, apliquei ao caso o entendimento consolidado na jurisprudência do tribunal, sobretudo em situações envolvendo agentes políticos em situação análoga. O Tribunal Pleno, por seus 11 ministros, dirá em breve o que majoritariamente entende sobre o tema e definirá de vez a questão.

Houve complô para tirar Lula do jogo eleitoral de 2018?
É preciso abandonar as teorias conspiratórias que imaginam que a Lava Jato seja fruto de uma articulação internacional com a grande mídia para derrubar a política tradicional. A Lava Jato não atacou a política, mas os corruptos. Isso não significa que não tenha cometido erros, nem que juízes e promotores estejam isentos de críticas. Agora, no Estado de Direito, as críticas e as censuras devem ser feitas por meio do devido processo legal. Essa narrativa conspiratória é perigosa. Ela imagina, no fundo, que apenas o governo de ocasião tem condições de controlar o Poder Judiciário e o Ministério Público. Não podemos admitir que os retrocessos no combate à corrupção, que envolvem muito mais ações do que apenas a de punir os responsáveis, possa se transformar em retrocesso institucional.