Há dois anos, desde que passou a apoiar incondicionalmente o presidente Jair Bolsonaro, o ex-deputado federal Roberto Jefferson segue numa escalada de agressividade. Chegou ao ponto alto dessa trajetória no domingo 23 ao receber com tiros e granadas os agentes da Polícia Federal (PF) que foram até a sua casa para prendê-lo, em Levy Gasparian, no interior do Rio de Janeiro.

A ordem de prisão fora dada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, uma vez que Jefferson estava burlando todas as medidas cautelares de sua prisão domiciliar, além de ter ofendido a ministra da Corte Cármen Lúcia.

RELAÇÕES PERIGOSAS Bolsonaro bem que tentou, mas não conseguiu emplacar sua versão de que não é ligado a Jefferson.“Não tem uma foto dele comigo”, chegou a dizer, antes de ser desmentido pelos fatos. A proximidade era tanta que, do interior da cadeia, o ex-deputado fez chegar ao presidente a mensagem de que espera retribuição à sua fidelidade. Na foto ao centro, entre Bolsonaro e Jefferson está a ex-presidente do PTB Graciela Nienov

Na reação alucinada de Jefferson tem-se a velha história do dedo e do gatilho: as armas eram dele, mas as mãos que as acionaram pertencem a Jair Bolsonaro e aos bolsonaristas que incorporam o discurso de ódio do presidente. Prova disso é que Bolsonaro ficou entre a cruz e a espada. Ensaiou um discurso radical em defesa de Jefferson, no qual ameaçaria romper com as instituições, foi desaconselhado a fazê-lo por sua equipe de campanha, buscou apoio ao telefone entre militares e ficou a ver navios. Mudou então o tom do pronunciamento porque se viu isolado, e aí veio o outro lado da mesma moeda podre: acabou desagradando as suas bases sanguinárias. Ao atirar contra agentes de Estado, Jefferson simbolicamente acertou o pé: não o dele, mas, isso sim, o pé do capitão.

Desde que subiu a rampa do Palácio do Planalto, em 2019, Bolsonaro editou uma série de decretos para facilitar que a população compre armamentos – pura tática visando montar para si uma espécie de guarda pretoriana para respaldá-lo em um golpe às instituições. Em junho do ano passado o presidente comemorou o aumento do índice de pessoas aptas a ter armas no País: “aqui nós estamos chegando a 700 mil CACs (colecionador, atirador desportivo e caçador). Em três anos e meio dobramos o número no Brasil”.

O INFERNO É AQUI À esquerda, três cenas de um crime: viatura fuzilada por Jefferson; a policial Karina Oliveira, ferida no confronto; e os fuzis apreendidos. À direita, o “padre de festa junina” Kelmon, oferece “apoio espiritual” a Jefferson e auxilia nas negociações com a PF pela rendição do ex-deputado. Inexplicavelmente sorrindo, o negociador da PF Vinicius Secundo

Hoje há no País 1,78 milhão de armas com registro ativo e, desse total, 957 mil estão em posse de CACs, de acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública-2022. Teve até CACs comprando armas e as revendendo ao crime organizado e a milicianos. Está no espírito do bolsonarismo dar-se ao direito de resistir a decisões judiciais que considere indevidas, e tal espírito encarnou em Jefferson – juntaram-se a fome a vontade de comer.

A fala demagógica e criminosa do presidente para incutir essa ideia na população de forma populista é: “entendo que arma é liberdade, e que o povo armado jamais será escravizado”. Ou seja: ele delira que os brasileiros atirarão contra o Estado de Direito para mantê-lo no poder. Junte-se a isso o fato de ele, Bolsonaro, viver anunciando que não cumprira mais ordens de Alexandre de Moraes. É a fala típica de quem manifesta comportamento delinquencial em relação a juízes. Moraes é o ministro responsável por inquéritos que investigam atos antidemocráticos e a disseminação de fake news.

Até ser preso, no domingo, Jefferson era celebrado pelos bons serviços prestados à causa. Em maio de 2020, o ex-deputado de extrema direita publicou no Twitter uma foto sua com um fuzil nas mãos e, citando a Bíblia, disse estar pronto para “combater o bom combate” – contra “o comunismo, a ditadura, a tirania, os traidores, os vendilhões da pátria”. Pouco tempo depois, foi recebido no Palácio do Planalto pelo ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Luiz Eduardo Ramos, que registrou a visita numa rede social e referiu-se ao ex-parlamentar como “soldado na luta pela liberdade do nosso povo e pela democracia do nosso Brasil”. De soldado, Ramos deve entender, já que é general da reserva do Exército Brasileiro e chegou a ser Comandante Militar do Sudeste. As Forças Armadas, aliás, poderiam ter passado sem mais esse vexame.

Preso em casa

Em razão de um câncer no pâncreas, Jefferson, que é acusado de tumultuar o processo eleitoral, estava em prisão domiciliar desde janeiro de 2022. Deveria permanecer recolhido em casa e incomunicável, mas divulgou no perfil da filha, Cristiane Brasil, um vídeo com violentos ataques sexistas à ministra Carmen Lúcia por discordar de uma de suas manifestações jurídicas, acusando-a de impor suposta “censura prévia” a uma empresa de comunicação aliada ao bolsonarismo.

TROPA DE ELITE Pouco tempo depois de se apresentar no Twitter armado com um fuzil e pronto para o “combate” ao “comunismo” e à “tirania”, Jefferson foi recebido no Palácio do Planalto pelo ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, general Luiz Eduardo Ramos

Alexandre de Moraes revogou, então, a prisão domiciliar e determinou que ele retornasse ao sistema prisional. Além de ter-se manifestado nas redes sociais, o ex-deputado granadeiro vinha recebendo visitas e concedendo entrevistas. Bolsonaro agora tenta desesperadamente desvincular-se do aliado: “o que eu tenho a ver com o Roberto Jefferson dar tiros nos outros, meu Deus do Céu?”. O cinismo desmontou-se de vez quando o presidente afirmou que jamais tirara foto com Jefferson, sendo imediatamente desmentido pelos fatos.

Bolsonaro também veio a público dizer que “quem atira na polícia é bandido e deve ser tratado como tal”. Cristiane Brasil, herdeira política e porta-voz do pai, pelo menos publicamente minimizou o fato de o capitão ter virado as costas e declarou compreender a movimentação do presidente na reta final da eleição. Disse ainda que o pai “não espera nenhum tipo de ajuda ou colaboração” de Bolsonaro ou do governo. Do interior de sua cela, no entanto, Jefferson mandou um recado para o mandatário: não aceita ser abandonado e, se Bolsonaro vencer, espera retribuição à fidelidade que dispensou ao aliado.

O ex-deputado, aliás, é tão caro ao bolsonarismo que, para acompanhar as negociações sobre sua rendição depois dos tiros contra a PF, o presidente escalou ninguém menos que o Ministro da Justiça, Anderson Torres, que estava em Brasília. A esperança era de que a polícia se sentisse coagida com a sua presença. Alexandre de Moraes não precisou de mais de um segundo para entender a jogada de Torres e despachou um segundo mandado de prisão no qual incluía qualquer autoridade que tentasse interferir na situação.

Cadeia é cadeia, e Torres não é bobo. Foi somente até metade do caminho: acompanhou tudo da cidade mineira de Juiz de Fora, onde se localiza o aeroporto mais próximo. Armou-se então na residência de Jefferson um circo de horrores inimaginável num passado recente, antes de o País mergulhar na atual distopia bolsonarista.

PRESTÍGIO Anderson Torres, ministro da Justiça, acompanhou de perto a rendição de Jefferson, delinquente sequencial que acabara de balear dois policiais. Quarenta e oito horas antes, Jefferson alvejara com ataques sexistas a ministra Cármen Lúcia (Crédito: Pedro Ladeira)

O cidadão Kelmon, que se diz padre e já foi batizado em um debate como “padre de festa junina” pela senadora Soraya Thronicke, conseguiu entrar no local sob a alegação de que estava ali para oferecer “apoio espiritual” ao ex-deputado – e negociava com um sorridente e amistoso policial federal, o agente Vinicius Secundo, a rendição de um delinquente que pouco antes havia atirado em uma agente e em um delegado. Tudo com direito a filmagens feitas por apoiadores de Jefferson.

Padre Kelmon, aliás, havia se tornado o candidato do PTB à Presidência da República depois que a candidatura de Jefferson foi barrada pela Justiça Eleitoral – e ele entrou na disputa para fazer dobradinha com Bolsonaro e tumultuar os debates. A poucos metros dali, algumas dezenas de bolsonaristas atendiam ao chamado de Cristiane Brasil, que havia convocado seus seguidores a comparecer ao local: “quem estiver perto corra pra lá. Xandão vai matar meu pai hoje. Mandou a polícia prendê-lo e ele não vai se entregar”.

A expectativa é que Bolsonaro, ainda que perca a eleição, indulte Jefferson até 31 de dezembro. O presidente já livrou das grades outro pitbull do bolsonarismo, o deputado federal Daniel Silveira.
Estaria fechada, assim, essa macabra história com chave de cadeia.