ALVOS “A Justiça” escultura de Alfredo Ceschiatti, e o brasão da República(abaixo) que ornava o plenário do STF são vandalizados pelos apoiadores de Bolsonaro (Crédito:Eduardo F S Lima)

Desde o restabelecimento pleno da democracia, em 1988, nunca os Três Poderes tinham sido alvo de um ataque como o que aconteceu no domingo, 8 de janeiro. As sedes do Executivo, Legislativo e Judiciário foram invadidas e depredadas por milhares de bolsonaristas, que não tinham um plano coerente além de destruir os pilares da República. Jamais a sede do governo tinha sofrido tal ataque. Foi uma tentativa frustrada de golpe que procurou repetir o levante do Capitólio americano dois anos antes. Nos dois casos, a democracia prevaleceu. Apesar dos danos irreparáveis ao patrimônio público, do choque internacional e da comoção doméstica, o levante de Brasília terminou em poucas horas com os Poderes mais unidos e os agentes do caos isolados ou presos.

Ainda na noite do dia 8, o ministro do STF Alexandre de Moraes teve um papel decisivo para restabelecer a ordem, afastar as autoridades cuja omissão levou às invasões e preparar o cerco aos terroristas que executaram, lideraram, financiaram ou inspiraram o quebra-quebra. No dia seguinte, enquanto era feito o rescaldo, 1.200 bolsonaristas que ainda se aglutinavam em frente ao Quartel-General do Exército foram encaminhados à prisão. No fim do dia, todas os acampamentos em frente aos quartéis pelo País já tinham sido desmontados. Começou, então, o trabalho de apuração para identificar a cadeia de comando que levou ao ataque.

 

Divulgação

A tragédia ocorreu uma semana após uma posse transmitida de forma exemplar e em meio a um apagão nas forças de segurança nas duas esferas, distrital e federal. Essas falhas agora precisarão ser escrutinadas. Mais importante, deverão ser investigados e punidos todos os que atuaram no complô. Logo ficou claro que o cerco a Brasília havia sido organizado de forma detalhada e articulada. Grupos nas redes sociais instavam à ação usando expressões que tentaram burlar o olhar das autoridades, como chamar o assalto de “festa da Selma”. Havia preparativo para combate físico e menção a armas, além de instruções para os arruaceiros levarem máscaras antigás. Fora de Brasília, outras investidas falharam, como o bloqueio de refinarias da Petrobras. Pelos menos três torres de transmissão de energia foram derrubadas no Paraná e em Rondônia com indícios de vandalismo ou sabotagem, o que levou a Aneel a criar um gabinete de crise.

HORROR Bolsonaristas depredam o prédio histórico do Supremo Tribunal Federal e enfrentam os policiais que tentaram contê-los na praça dos Três Poderes (ao lado). A omissão ou conivência fez com que os terroristas fossem escoltados em direção ao local pelas próprias forças de segurança(abaixo) (Crédito:George Marques)

Desde as eleições, os partidários de Jair Bolsonaro já haviam bloqueado rodovias e aeroportos. Na manhã de segunda-feira, tentaram paralisar a marginal Tietê, uma das principais artérias da capital paulista. A ameaça persistia dois dias depois, quando, a pedido da Advocacia-Geral da União, Moraes determinou o fechamento da Esplanada dos Ministérios e a proibição de bloqueio de vias públicas pelo País. Havia informações nos grupos bolsonaristas de que uma nova ação, apelidada de “Mega manifestação nacional pela retomada do poder”, ocorreria nesse dia. Os atentados foram abortados, mas a amea permanecia latente.

Ton Molina

Em Brasília, houve um ataque ao Estado de Direito, e não a prédios. O historiador Marco Antonio Villa destaca que não há paralelo na história do Brasil, nem quando a Capital Federal era no Rio de Janeiro. “Foi o dia mais sombrio desde a instalação plena da democracia no Brasil. Uma espécie de dia da infâmia, comparável a Pearl Harbour, em 1941, o ataque japonês aos EUA”, avalia. “Algo realmente pavoroso.” Isso deve mudar a forma como as investidas antidemocráticas serão encaradas daqui para a frente, na prática política e dentro do arcabouço legal. Na carta em que condenaram de forma uníssona os atentados, os chefes dos Três Poderes classificaram os atos de “ terrorismo”. Essa tipificação legal ainda deve ser debatida, já que a atual lei antiterrorismo pune apenas os atos motivados por xenofobia, discriminação ou preconceito. Mas a menção pode apontar para uma nova abordagem, muito mais rigorosa.

Maurício Zanoide de Moraes, professor de Direito Penal da USP, afirma que as penas para os envolvidos tendem a ser altas. Eles podem ser enquadrados com base em três blocos de leis diferentes, sendo o principal deles o que tipifica os crimes contra a democracia. “As condutas precisam ser individualizadas, com base em filmagens, quebras de sigilo e registros em redes sociais. A pessoa pode ser condenada de quatro a 12 anos de prisão pela tentativa de depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído. Caso tenha agido para promover uma intervenção militar, pode responder por tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, cuja pena vai de quatro a oito anos de prisão”, explica. “Quem auxiliou o plano de quebra-quebra a sair do papel cometeu crime, pouco importa onde estivesse no domingo.” Os radicais ainda infringiram, segundo o professor, a Lei n° 9.605 de 1998, que lista crimes contra o Ordenamento Urbano e o patrimônio cultural. “Essa legislação prevê punição para quem destrói, deteriora ou inutiliza patrimônio cultural ou prédios protegidos por lei e para aqueles que picham ou grafitam monumento urbano”, ressalta. Não bastasse, os envolvidos têm chances de responder por incitação ao crime e associação criminosa e, em alguns casos, por furto, resistência e lesão corporal de agentes públicos.

PACTO DE UNIÃO Lula se reúne com os chefes dos Três Poderes no Palácio do Planalto, no day after dos ataques. No fim do dia, governadores também se integraram a uma caminhada simbólica rumo ao STF (abaixo) (Crédito:Divulgação)

Mais rigor

Relator do inquérito sobre as milícias digitais e os atos antidemocráticos, Alexandre de Moraes já mostrou na prática uma atitude mais rigorosa ao determinar a prisão em flagrante de todos os integrantes de acampamentos bolsonaristas. Na quarta-feira, 1.028 permaneciam detidos em Brasília: 637 na Papuda (complexo penitenciário masculino) e 391 na Colméia (feminino). A desmobilização do agrupamento brasiliense era tratada há semanas como urgência pela equipe de Lula, sobretudo depois de a Polícia Civil identificar que parte dos seus membros participou da baderna de 12 de dezembro, quando o prédio da PF foi atacado e ônibus foram incendiados. Moraes, aliás, ironizou as reclamações de criminosos que espalham mentiras sobre maus tratos. “Não achem esses terroristas que a prisão seja uma colônia de férias. Não achem que as instituições irão fraquejar”, alertou. “Não estamos falando de manifestações legítimas, de livre expressão do pensamento”, concorda o professor de Ciência Política da USP José Álvaro Moisés. “Estamos falando de ataques violentos a instituições, que levaram a depredações e à destruição do patrimônio dos brasileiros. Os responsáveis precisam ser punidos.”

Ueslei Marcelino

Cerco aos responsáveis

A Advocacia-Geral da União montou um núcleo para acompanhar as investigações. O Grupo Especial de Defesa da Democracia terá dedicação exclusiva à elaboração de pedidos de novas quebras de sigilos bancário, fiscal, telefônico e de outras medidas cautelares relacionadas aos radicais e à apresentação de ações de improbidade administrativa e de ressarcimento e pedidos de compartilhamento de provas. Autoridades suspeitas de omissão também não terão vida fácil. O afastamento de Ibaneis Rocha do cargo de governador do Distrito Federal e o mandado de prisão de Anderson Torres (secretário de Segurança e antigo ministro da Justiça de Jair Bolsonaro) e do ex-comandante da Polícia Militar coronel Fábio Augusto foram medidas essenciais para evitar eventuais insubordinações (leia mais à pág. 26). Tanto o STF quanto o interventor na capital, Ricardo Cappelli, mostram-se certos quanto ao papel deles para o desfecho. E, eventualmente, até sobre o eventual papel de Bolsonaro. Segundo informou o portal UOL, o Palácio do Planalto recebeu a informação de que Torres se encontrou com Bolsonaro em Orlando, nos EUA, um dia antes do quebra-quebra em Brasília. O ex-presidente está em solo norte-americano desde 30 de dezembro.

As iniciativas de Moraes têm contado com amplo respaldo do STF. O ministro, criticado até então pela ala garantista da Corte em razão da extensão dos inquéritos das fake news e das milícias digitais, fortaleceu-se. A prova está no plenário. Atendendo a uma reforma no regimento interno do STF, Moraes tem submetido ao colegiado as medidas cautelares urgentes do processo que mira golpistas, com prisões e buscas e apreensões. Todas foram aprovadas. O STF não será a única instituição linha-dura na investigação. No Senado, há acordo para a instalação da CPI dos atos antidemocráticos após o recesso parlamentar, em fevereiro. “A CPI pode abrir novos flancos de investigação e compartilhar provas com a PGR”, pontua a autora do requerimento, Soraya Thronicke. “Para dar o pontapé inicial, devemos pedir acesso às mais de 60 mil denúncias registradas no Ministério da Justiça no canal aberto especialmente. Quanto mais mãos, mais rápido”, emenda. Thronicke não descarta a convocação de Bolsonaro para prestar esclarecimentos. “Nosso objetivo é elencar quem financiou e instigou a manifestação — os chamados autores intelectuais. Não duvido que Bolsonaro será um dos primeiros a falar.” O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, concorda com a urgência da CPI. “Essa minoria antidemocrática não irá impor sua vontade por meio da barbárie, da força e de atos criminosos.”

Apesar dos prejuízos, as instituições deram uma demonstração notável de resiliência. Foi um dano simbólico, por assim dizer. Por exemplo: todos os gabinetes dos ministros do STF, inclusive os processos e dados sensíveis, permaneceram intocados, já que se encontram num anexo que não foi acessado pelos vândalos. Politicamente, Lula se fortaleceu. Ele ganhou amplo apoio de todos os governadores no day after da tragédia, inclusive dos que se dizem simpáticos ao ex- presidente, como Tarcísio de Freitas, de São Paulo. O petista uniu ministros do STF e os 27 gestores estaduais em um pacto nacional pela pacificação. “Eles querem é golpe, e golpe não vai ter. Eles têm que aprender que democracia é a coisa mais complicada para a gente fazer, porque exige suportar os outros, exige conviver com quem a gente não gosta”, discursou. Depois, fez uma caminhada com todos em meio aos escombros, e a visita simbólica ao plenário destruído do STF funcionou como uma segunda posse simbólica.

 

REAÇÕES Mil e duzentos terroristas que estavam em frente ao QG do Exército foram detidos (acima). Nos EUA, Bolsonaro se internou alegando dores. Alexandre de Moraes inspeciona o STF

O assalto a Brasília pode até facilitar a atração dos simpatizantes de Bolsonaro que se horrorizaram com as cenas de barbárie. Isso inclui a delicada relação do governo petista com as Forças Armadas, um tema que passou a ser ainda mais urgente. Doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia e pesquisador da Universidade Tulane, em Nova Orleans, Igor Acácio diz que será preciso mudar a política que prevaleceu desde 1989, quando ministros da Defesa dos sucessivos presidentes civis vinham utilizando a chamada estratégia de baixo custo, que consiste em não antagonizar com os militares. A fórmula deixou de funcionar. “Não dá mais para fazer isso num momento em que as Forças Armadas se repolitizaram. O presidente precisa se posicionar”, argumenta. Sobre a decretação da intervenção federal na Segurança Pública do DF e a convocação da Força Nacional, o pesquisador avalia que o presidente tomou a decisão correta. “Surpreende um pouco que não tenha sido decretada uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), com a convocação das Forças Armadas”, diz. “O governo pode ter avaliado que não era uma força confiável, naquele momento, para aquela operação”. O cientista político lembra, no entanto, que havia militares atuando no dia da invasão do Palácio do Planalto: “O Batalhão da Guarda Presidencial (BGP) é do Exército, subordinado ao Comando Militar do Planalto; eles estavam presentes, e mesmo assim o prédio foi tomado”, diz. O efetivo é de 1,4 mil homens. “A função dessa tropa é a proteção do patrimônio público daquela área. Houve leniência? Onde estavam essas pessoas? Tem que ser investigado.”

Ao contrário de Lula, Bolsonaro e seus seguidores ficaram ainda mais isolados e marginalizados. Que Flávio Bolsonaro e outros apoiadores tenham se apressado a afastar os tentáculos do capitão dos acontecimentos é sintoma do dano potencial que o Capitólio brasileiro causará ao seu grupo político. Nos EUA, o ex-mandatário internou-se após o ataque alegando desconforto gástrico e anunciou que vai antecipar a volta ao Brasil, uma providência que parece responder ao risco de sofrer sanções do governo americano (Joe Biden foi um dos primeiros chefes de Estado a prestar solidariedade a Lula e apoio à democracia brasileira).

Sua volta não tem a ver apenas com o medo de ser obrigado a deixar os EUA. Para usar uma metáfora armamentista do seu gosto, o tiro saiu pela culatra. De volta ao País, ele tentará se defender e gerenciar os danos que seus seguidores radicais causaram em sua própria imagem. A sonhada “anistia” para ele e sua família fica ainda mais distante quando o próprio Judiciário foi vilipendiado por sua turba. Seu novo papel de “líder da oposição” fica ainda mais improvável. É algo, aliás, até previsível, já que Bolsonaro sempre teve dificuldades em agir dentro das normas democráticas. Apenas três dias após o atentado, o ex-presidente já compartilhou em rede social uma postagem com informações falsas e ataques ao sistema eleitoral. Apagou- a duas horas depois, mas isso faz parte de sua estratégia. É um jogo de morde e assopra. Bolsonaro planta a dúvida para colher o caos — e precisa ser contido definitivamente. A democracia brasileira ainda não saiu da zona de risco. É hora de reagir — e punir.

Colaborou Garbriela Rölke