O assassinato brutal de Moïse Mugenyi Kabagambe, jovem congolês de 24 anos, escancara o tamanho do buraco em que estamos afundados: rasgam-se os laços, já frágeis, das regras de civilidade e desconsidera-se qualquer ação comunicativa baseada no diálogo, na empatia e solidariedade. Os espelhos nos quais gostávamos de mirar a imagem de um País acolhedor se estilhaçaram, voaram em pedaços e atingiram a todos nós. Mas é sempre bom lembrar que esse espelho foi entregue com defeito de fabricação para os indesejáveis do Brasil, sempre mostrando-se rachado, invertido, desautorizando a validação daquelas imagens.

Provavelmente, por ter respingado em todos nós, os cacos desse espelho deformado forjaram uma reação em cadeia nas redes sociais e em espaços materiais. Barbárie, racismo, xenofobia, desumanidade, crueldade… foram expressões que compuseram, não sem razão, uma nuvem de palavras na qual nos abrigamos para manifestar nossa genuína indignação. Mas será que ao qualificarmos o crime dessa maneira nos damos conta de que essa designação exige da gente algo mais do que textos em fluxo contínuo na internet?

Inegavelmente importantes, os posts por si só não são suficientes para nos arrancar da indiferença ética. É preciso avanços significativos no mundo material, é urgente uma radicalização nos propósitos de mudança e transformação coletiva. Moïse sintetizava as faltas que marcam a trajetória de tantos imigrantes/refugiados originários das bordas do mundo, mas também as que ameaçam os brasileiros. De tanta falta, a situação de Moïse é quase tudo: precarização do/no trabalho, ausência de uma rede de proteção dos direitos, batalha diária pela sobrevivência…

Os espelhos nos quais gostávamos de mirar a imagem de um País acolhedor se estilhaçaram, voaram em pedaços e atingiram a todos nós com o assassinato de Moïse

Nesse universo de faltas que se multiplicam exponencialmente, Moïse era mais um entrave em meio a uma teia de trabalhadores faltantes, miseráveis. Na lógica concorrencial pela obtenção do abaixo do mínimo, Moïse foi esculpido como inimigo. E não foi difícil a ele anexar (des)qualificativos: bêbado, perigoso, ladrão.

No artigo “Construir o inimigo”, Umberto Eco lembra que o estrangeiro é sempre um inimigo em potencial, mas acrescenta: “estrangeiro entre todos, e pela cor diversa, é o negro.” Se tivermos ouvidos para ouvir o que enunciamos nas últimas semanas e se concordarmos com o que diz Eco talvez se opere uma virada de chave capaz de nos oferecer outros espelhos que reflitam as perturbadoras imagens que atordoam e matam os corpos precarizados como o de Moïse Kabagambe. Se não for dessa agora, quando será?