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O Carnaval está aí. E, com ele, vem a marchinha, o frevo, o samba e o axé. Tudo no último volume. É o paraíso para quem gosta de folia, mas o inferno para quem clama por sossego. Em dias de festa, especialmente nas cidades onde a diversão acontece nas ruas, com blocos e trios elétricos arrastando multidões, o nível de ruído facilmente ultrapassa os 110 decibéis. Um volume extremamente alto se considerarmos que o limite suportado pelo organismo humano sem consequências físicas é de 60 decibéis.

Nessas condições, a musculatura fica tensa, o coração dispara, a pressão arterial sobe, o estômago encharca de suco gástrico e o intestino trabalha devagar. Mais adiante, além da surdez, vem stress, insônia, impotência sexual e até infartos e derrames. Quem mora em metrópoles sabe que não é preciso chegar o Carnaval para sentir as consequências da poluição sonora. Transitar nas avenidas Paulista, em São Paulo, ou Getúlio Vargas, no Rio, em horário de rush, significa estar exposto a um nível de ruído de até 99.9 decibéis. Por isso, vários municípios estão tomando medidas para coibir o barulho que incomoda a coletividade e cada vez mais pessoas buscam soluções individuais para poder desfrutar do silêncio.

Até recentemente, a poluição sonora era vista como mero incômodo. Mas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), é o terceiro problema ambiental que mais afeta populações no mundo – só perde para a poluição do ar e da água. Barcelona, na Espanha, é exemplo de município que encara o problema de frente e colhe resultados. A cidade se tornou a primeira na Europa a investir em um asfalto capaz de reduzir em até quatro decibéis o som provocado pela passagem de veículos. Também realiza ações esporádicas nas ruas. De medidores de ruídos em punho, agentes aplicam multas em quem ultrapassa limites predeterminados. "A poluição sonora é um problema global", diz o engenheiro Samir Gerges, vicepresidente da Federação Ibero-Americana de Acústica. "Barcelona é das cidades mais barulhentas do mundo, não estando longe de outras como Cairo (Egito), Cidade do México e Rio de Janeiro, especialmente em Copacabana, uma região muito densa."

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FUGA DA CIDADE Duas vezes por ano, Thiago Pinheiro sai
de São Paulo e faz uma "desintoxicação acústica"
em um local deserto e sem energia elétrica

A surdez está no topo da lista dos problemas desencadeados pelo volume alto. De acordo com dados de 2005 da OMS, 278 milhões de pessoas no mundo têm perda de audição, de leve a profunda, e 30 milhões de brasileiros sofrem com o zumbido, chiado constante nos ouvidos que pode levar à surdez. Atentas a isso, algumas empresas estão se adaptando. A Apple, por exemplo, desenvolveu um mecanismo que dificulta a elevação de volume em seus tocadores de MP3. Para ouvir mais alto, é preciso habilitar o aparelho. "Os fones descarregam um ruído de até 120 decibéis diretamente no tímpano, colaborando com o aparecimento do zumbido", alerta a fonoaudióloga Isabela Gomes, do Centro Auditivo Telex. O centro realiza testes para avaliar perda auditiva e comercializa redutores de ruído ambiente de até 25 decibéis.

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Salvador é extremamente ruidosa, durante os eventos de seu extenso calendário festivo e fora dele também. Segundo a prefeitura, 30% das ocorrências registradas referem-se a carros particulares. É muito comum condutores estacionarem seus veículos em locais públicos, abrirem o porta-malas e ligarem o som. E não é qualquer aparelho de CD. Segundo a própria prefeitura, o investimento nesse tipo de aparelhagem às vezes até ultrapassa o valor dos carros. A prática vem irritando moradores, que cada vez mais denunciam, e donos de postos, revoltados com a confusão que a mistura explosiva de axé e álcool costuma provocar.

No fim de 2008, um frentista de 23 anos foi morto a tiros depois de pedir para que o proprietário de um veículo estacionado no posto onde trabalhava abaixasse o volume. O som em Salvador é regido pela Lei nº 5.354/98, que determina o índice máximo de 70 decibéis de dia, e 60, à noite. Nos locais de Carnaval, decreto municipal estabelece 110 decibéis para os trios e 80 para os camarotes. Em 2008, foram realizadas 1.643 notificações, 582 autos, 33 embargos e 95 apreensões.

São Paulo, com sua vida noturna agitada, grande número de obras e trânsito caótico – 5,5 milhões de carros circulam diariamente pelo município -, também está no topo do ranking das cidades mais poluídas. Além do Psiu (Programa de Silêncio Urbano), que é baseado em duas leis municipais e, desde 2005, realizou cerca de 65 mil vistorias e aplicou 633 multas, o prefeito Gilberto Kassab levantou a bandeira contra o barulho. Carros com aparelhos sonoros nas ruas e amplificadores em comércios e feiras livres estão proibidos.

Essas medidas ajudam, mas estão longe de tornar a vida das pessoas confortável. O paulistano Thiago Pinheiro, 26 anos, costuma fugir da cidade de vez em quando. "Como músico, estou muito mais ligado nos sons. Por isso, para mim, morar em São Paulo é muito sufocante", diz. Ele desistiu de encontrar o silêncio em sua casa, no bairro do Campo Belo, e em seu estúdio após o trabalho. "Quando acho que vou conseguir me desligar do stress, o cachorro do vizinho late", conta. Por isso, duas vezes por ano, Thiago pega a mochila e segue para Ilha Grande, no Rio, uma região deserta e sem energia elétrica, para o que chama de "desintoxicação acústica". "É um momento meu, em que cultivo meu silêncio mental", diz ele.

Escapar para lugares ermos são uma alternativa para quem vive em meio ao caos urbano e quer paz. Experiências ainda mais profundas constituem a proposta dos retiros de silêncio, locais onde as pessoas ficam dias sem falar. "De tempos em tempos é bom fazer uma faxina interna", diz Wagner Canalonga, da Sociedade Taoísta, que organiza viagens de uma semana na qual as pessoas meditam e se comunicam o mínimo possível verbalmente. O bancário João D’Agostino, 35 anos, segue para seu terceiro retiro, que acontecerá exatamente no Carnaval, em Camanducaia (MG). "Foi uma descoberta na minha vida, me ajudou a lidar com a ansiedade", diz. Além do silêncio exterior, o interior também contribui para uma vida feliz e saudável.

Foi com esta paz que a madre Maria José, 67 anos, viveu anos em clausura. Das quatro décadas de vida religiosa, ela passou 24 anos em conventos no Rio de Janeiro e em Vitória (ES). Só tinha a permissão de falar em horários predeterminados e de deixar o local para consultas médicas. Durante o resto de seu tempo, rezava. "Eu amei", diz a madre. "O estado no qual minha alma se encontrava me agradava demais", diz ela, que hoje reside no Carmelo do Espírito Santo, em São Paulo, na companhia de noviças. Estar em silêncio tem um porquê divino. "Ao calar, ouvimos Jesus", explica ela.

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OPÇÃO RADICAL Em busca de contato com o divino,
madre Maria José viveu feliz os 24 anos em que
ficou em clausura e só podia falar em horas predeterminadas

Não são todos que têm estrutura emocional para passar dias – muito menos anos – sem falar. "Pessoas de personalidades frágeis podem reagir mal quando ficam muito tempo em silêncio e se encontram consigo mesmas", diz o psiquiatra Augusto Capelo. A recomendação também vale para quem é depressivo ou sofre de síndrome do pânico. Mas para o homem contemporâneo, que é cada vez mais egocêntrico, agitado e ansioso, pode ser uma bênção. "O mundo de hoje faz com que as pessoas falem cada vez mais e ouçam cada vez menos, contribuindo para o caos acústico em que vivemos", resume Capelo.