ELZA FIÚZA

FIBRA Tragédia na infância levou Kring a estudar

A índia Kring Kaingang aprendeu desde criança a resistir à destruição da sua cultura na reserva Carreteiro, no Rio Grande do Sul, onde nasceu. Mesmo proibido, ela falava kaingang na escola. Ficava de castigo, de joelhos sobre milho e feijão. Durante o regime militar, o tenente que distribuía sopa na aldeia sempre mandava Kring para o final da fila, pois ela desobedecia à ordem de pedir comida só em português. Kring, que significa “estrela”, hoje move ação na Justiça para alterar o nome branco que lhe deram: Azelene, uma imposição do chefe do posto do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI). A grande batalha de Kring, no entanto, começa agora. Aos 42 anos de idade, ela materializa a lenda das índias guerreiras e faz uma série de visitas a etnias da Amazônia para divulgar a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que ela mesma ajudou a redigir e a aprovar em setembro, em Nova York, na sede da ONU, como representante das etnias brasileiras. O documento dá mais independência a 370 milhões de índios no planeta. No Brasil, a Declaração será usada para barrar mineração e grandes obras do PAC que atingem reservas indígenas. “A declaração será a borduna dos índios nos próximos séculos”, diz Kring. “No Brasil, vai dar uma freada no PAC.” Para Kring, ficará bem mais fácil impedir a exploração de minérios em terras indígenas, que vai precisar de aprovação das aldeias. “Não acreditamos que mineração em terra indígena melhore as condições de vida dos índios e gere riqueza”, diz ela. “Isso só traz prostituição e doenças.”

Munida de celular, laptop, aparelho nos dentes, Kring organizará um seminário nacional no início do ano em Brasília para divulgar a Declaração. Ela se diz credenciada para defender os índios. Formada em sociologia pela PUC do Paraná, é coordenadora- geral de Defesa dos Direitos Indígenas da Funai e trabalha como ouvidora- geral de todas as etnias do País. Em 2006, Kring recebeu das mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva o Prêmio Nacional de Direitos Humanos. Ela preside o Warã Instituto Indígena, organização que ganhou o prêmio pela promoção dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais dos índios. “O maior acerto do presidente Lula foi a homologação da terra Raposa Serra do Sol, em Roraima”, diz Kring. “O grande erro é não considerar os povos indígenas em todo o processo de desenvolvimento.”

A sensibilidade para defender os direitos dos índios, diz Kring, nasceu de uma tragédia. Em 1981, ela viu enfileirados os oito corpos de kaingangs mortos em um conflito na aldeia. Os nove irmãos e os pais de Kring participaram da batalha. O governo mandou uma antropóloga para levar a paz ao local. “Meu pai, cacique, olhou para mim e disse que eu tinha de estudar muito, pois os índios precisavam resolver os próprios conflitos”, lembra Kring. Nessa época, ela tentava superar o medo que tinha de espíritos. “Quando eu ia para a escola caminhando pela trilha no mato, qualquer pedaço de galho seco que caía era espírito”, sorri Kring.