09/08/2006 - 10:00
As crianças da aldeia de Qana foram tragadas pela noite. Dormiam nos braços protetores de seus pais quando a casa de três andares em que se encontravam desabou, atingida por aviões israelenses. Era noite de domingo, 30 de julho. Uma pessoa religiosa diria que as pobres crianças acordaram mortas, e essa seria uma idéia chocante. A maioria de nós, pais e mães, vendo as imagens dos pequenos cadáveres, simplesmente não pôde evitar um uivo interior de indignação. Que guerra é essa que alveja seres humanos que não sabem pentear os próprios cabelos? Que exército de Herodes é esse que abate guerrilheiros ainda no colo da mãe? Três dias depois do massacre, um inquérito conduzido em Israel concluiu que a culpa pelo “incidente” era do próprio Hizbolá. Os guerrilheiros xiitas teriam usado civis como escudo contra os ataques. “Se tivéssemos informação de que havia civis ali, o ataque não teria acontecido”, diz o comunicado. É meia-verdade. Basta olhar as fotos diárias da tragédia libanesa para perceber que os civis estão sendo pesadamente atingidos. E nem por isso Israel suspendeu seus ataques.
A lógica que move a máquina de matar é outra. Assim como ocorreu nas aldeias do Vietnã, durante uma guerra famosa por sua crueldade e racismo, a lógica do mais forte no sul do Líbano é punir com a devastação a quem abriga o inimigo. A racionália por trás do massacre é assustar potenciais colaboradores tanto quanto privar o adversário de uma base segura de operação. Não haveria vítimas inocentes nesse xadrez infernal, porque todos podem ser o inimigo. Se não agora, no futuro. Abbas Hashen, morador de Qana, não poderia ser mais claro. “Não só aqui, mas em todo o sul do Líbano somos todos xiitas e estamos unidos com o Hizbolá’, diz ele. Isso faz dos aldeões e seus filhos alvos legítimos? À meia-luz de uma sala de comando, protegido pelo sigilo militar, um general endurecido pelo ódio dirá que sim, embora isso afronte os princípios mais básicos da convivência humana. “Atacar civis inocentes, sobretudo crianças, é um ato de barbárie repelido pela Convenção de Genebra e pela tradição intelectual e religiosa do Ocidente”, afirma o professor João Roberto Martins Filho, que leciona história da guerra na Universidade Federal de São Carlos. O conflito chegou a um beco moral sem saída. O Exército de Israel pode colher uma vitória militar, mas ela não trará a paz. Nem o sono dos justos. Nem honra. Nem admiração.