20/10/2017 - 18:00
Gostar ou não gostar de determinado gênero de música é uma questão pessoal. Eu, por exemplo, não gosto de funk batidão, acho que o seu ritmo (ou a falta dele) se assemelha mais ao barulho de funilaria de carro, menos ao de qualquer manifestação artística que se possa chamar de musical. Mas o funk está aí, e ganha cada vez mais as nossas quentes noites tropicais, sobretudo as das baladas nas periferias das grandes cidades. Ou seja: as periferias também estão aí, e nelas habitam o trabalhador, o isolamento, a fome, a pipa, a pedra, a brisa, a pobreza, a bola, o preconeito, a bandidagem. Numa mesma ladeira de periferia há uma farmácia, três sinucas, seis biqueiras e infinitos galpões de funk pancadão.
O Estado de Direito (a ladeira ainda não foi a ele apresentada) define-se pelos limites que impõe a si próprio. O Estado de Direito pressupõe a democracia, a democracia pressupõe a liberdade de expressão. Condeno, portanto, como inconstitucional, a taramelagem de autoridades que quiseram proibir o funk porque ele estaria ligado ao crime. É preciso separar as coisas. Qualquer gênero musical que faça apologia de atividades à margem das leis está incorrendo em crime e tem de ser proibido — seja funk ou música para sapatilha de ponta. Não se pode, no entanto, colocar tudo no mesmo diapasão. Há funk e funkeiros que não incentivam o narcotráfico, apenas retratam o dia a dia das comunidades carentes. Essa forma de funk não pode ser proibida. Foi louvável, nesse sentido, a iniciativa do senador Romário: na função de relator do projeto que pretendia criminalizar o funk, ele o vetou por completo.
Chico Buarque foi exuberante em mostrar o vaivém das “caravanas” de funkeiros que deixam os morros e vão para bairros nobres do Rio de Janeiro (com a honra de Rafael Mike participar da gravação da música), mas em nenhum momento Chico fez apologia do crime. No seu disco recém-lançado há referência ao centésimo décimo sexto soneto de amor de William Shakespeare, assim como há referência ao “O estrangeiro” de Albert Camus. E há Camus no funk. Entendo que ficou claro, assim, a confusão que os censores andam promovendo. Proibir todo e qualquer funk nos faz recordar do Brasil do começo do século passado, quando o samba era visto como música de malandro — e, invariavelmente, sambista dormia na cela da delegacia de vadiagem. Andar pela rua carregando violão dava cadeia, e quem quiser encontrará boas histórias sobre isso estudando, por exemplo, a vida e a obra de Roberto Martins e Ataulfo Alves. Como não dava para trancafiar o samba, trancafiavam-se os sambistas de forma generalizada. Isso é fascismo. É o mesmo erro que se quis repetir com os funkeiros.
Catões da moralidade, façam da periferia flor — e o funk cantará a jardinagem.