Conhecido por seu perfeccionismo, o cineasta americano Stanley Kubrick (1928-1999) sempre foi alvo de piadas reverentes vindas de suas equipes. Os fotógrafos, por exemplo, diziam que invariavelmente ele fechava o dia de filmagens na chamada hora mágica, aquele momento em que a luz se mostra perfeita, mas todos estão exaustos. Mesmo quando trabalhava em estúdios equipados de potentes holofotes, a regra continuava válida. É que ele só se satisfazia com uma cena depois de repassá-la inúmeras vezes. Assim aconteceu com Tom Cruise e Nicole Kidman no polêmico De olhos bem fechados, último trabalho do grande diretor. Vencido pela repetição e inseguro diante de sua performance, Cruise perguntou polidamente o que ele queria, afinal. “A magia, a magia!”, respondeu Kubrick. O episódio é uma das ótimas passagens do imperdível documentário Stanley Kubrick: uma vida quadro a quadro (Stanley Kubrick, a life in pictures, Estados Unidos, 2001), do alemão Jan Harlan, que vem sendo exibido pelo canal pago HBO, aos domingos, às 22h. Harlan é cunhado de Kubrick e foi produtor de todos os seus filmes desde Barry Lyndon, de 1975.

Apresentado apenas em festivais, o documentário de três partes será reprisado na íntegra, às 20h30 da sexta-feira 27, um dia depois do aniversário de Kubrick, que faria 73 anos. No dia seguinte, no mesmo horário, o público vai ser brindado com a revisão obrigatória de De olhos bem fechados. A homenagem não poderia ser mais oportuna e acontece simultaneamente à estréia nos Estados Unidos de A. I. – inteligência artificial, acalentado projeto que o diretor de O iluminado sonhou levar às telas por mais de duas décadas e acabou passando para as mãos de Steven Spielberg. No Brasil, o filme estréia dia 7 de setembro.

Spielberg é um dos entrevistados de Harlan. Fala da surpresa que teve ao ser procurado pelo ídolo de toda sua geração. “Quando Stanley me convidou para dirigir A.I., eu fiquei chocado. Ele até vislumbrou os créditos: ‘Uma produção de Stanley Kubrick para um filme de Steven Spielberg.’ Disse que o filme tinha mais a ver com minha sensibilidade que com a dele.” Kubrick devia ter lá suas razões. A história do garoto-robô David, versão futurista de Pinóquio, interpretado pelo fabuloso ator-mirim Haley Joel Osment, de O sexto sentido, tem mais a ver com a aventura de E. T. – o extraterrestre do que com os dilemas de Hal 9000, o computador de 2001 – uma odisséia no espaço. Num clima de conto de fadas, a fita mostra o desamparo do “garoto”, concebido para amar incondicionalmente os pais, que o abandonam numa floresta cheia de andróides avariados. Entre eles, Gigolo Joe (Jude Law), especializado em satisfazer necessidades sexuais de humanos, chamados de orga.

Making of – Por privar da intimidade do cineasta arredio, Harlan conta que Kubrick sempre adiava o projeto porque não vislumbrava o arsenal de efeitos especiais necessários para criar em celulóide seu mundo imaginário. Só teve certeza da viabilidade do projeto ao assistir ao espetáculo digital de Parque dos dinossauros. Parte desta história já é sabida e não é o melhor de Stanley Kubrick: uma vida quadro a quadro. Reunindo sequências de seus 16 trabalhos, inclusive os curtas-metragens, raros making of, fotos de família e filmes domésticos pela primeira vez vindos a público, a pesquisa é um documento precioso quando se sabe que Kubrick quase não dava entrevistas e só liberava seu set de filmagens para poucos privilegiados. Depoimentos da mulher Christiane Kubrick, de companheiros de profissão, como Alan Parker, Martin Scorsese e Woody Allen, além de técnicos, músicos, artistas e atores com os quais trabalhou, alternam-se na tentativa de desvendar um dos maiores mitos do cinema.

Logo no início, a voz do narrador Tom Cruise prepara o telespectador. “Este é um filme sobre um homem que ficava em silêncio, quer fosse aplaudido, quer amaldiçoado.” Para se ter uma idéia, só se ouve uma vez a voz do gênio, mesmo assim em off e aos 29 anos, quando ele começava a se consagrar com o antibelicista e hoje clássico filme Glória feita de sangue. Em seu depoimento, o diretor saúda a crise gerada pela televisão ao obrigar Hollywood a apostar num cinema mais sincero e ousado. Um traço que ele buscou em toda a sua carreira, se isolando nos arredores de Londres, depois da experiência complicada de dirigir o épico Spartacus. Harlan ainda foi atrás de histórias que ajudassem a traçar um rico perfil do cineasta – dos primeiros trabalhos, feitos com dinheiro do pai médico, às superproduções bancadas pela Warner Bross.

Todos os que passaram pela batuta de Kubrick salientam seu traço obsessivo, responsável por sua fama de ogro dos estúdios. Num making of assustador, por exemplo, o diretor aparece dando uma dura na atriz Shelley Duvall, de O iluminado, de deixar até o telespectador constrangido. Mais adiante, ela lembra do momento de crueldade: “Eu precisava gritar e ficar ofegante na maior parte do tempo. Isso durou mais de um ano. Era um trabalho muito intenso, um aprendizado fascinante, mas eu não gostaria de viver novamente a mesma situação.” Kubrick não elogiava ninguém. Achava que passar a mão na cabeça diminuía a auto-exigência. Se ficava em silêncio, era sinal de que estava satisfeito com o resultado. Em dado momento, é impressionante ver seu contentamento diante do tiroteio suicida dos soldados americanos em Nascido para matar ou da fúria assassina de Jack Nicholson na cena das machadadas de O iluminado. Nicholson, que nunca conseguiu se libertar dos esgares exibidos no filme, salienta o humor do mestre. “Ele me explicou, com aquele seu jeito pragmático, que se tratava de uma história sobre fantasmas e que qualquer obra que mostre vida pós-morte é otimista.” Boa piada.