Violência verbal, xingamentos e palavrões têm sido frequentes na Câmara dos Deputados desde o início da atual Legislatura, em fevereiro, o que em alguns momentos faz com que o plenário da Casa lembre um picadeiro de circo – circo ruim, deixe-se claro. O primeiro espetáculo, e talvez o mais emblemático, foi protagonizado no início de março pelo histriônico Nikolas Ferreira (PL-MG), quando ele colocou uma caricata peruca feminina para ironizar mulheres trans enquanto discursava da tribuna no Dia Internacional da Mulher. Preocupado com o potencial de dano à imagem do Legislativo, o presidente Arthur Lira (PP-AL) acelerou a instalação da Comissão de Ética, e tem dito aos líderes partidários que pretende agir com rigor para coibir o mau comportamento dos colegas. Especialmente incomodado com o caso Nikolas, Lira utilizou seu perfil no Twitter para criticar o mineiro: disse que o plenário “não é palco para exibicionismo” e não pode ser utilizado para vocalizar “discursos preconceituosos”. “Não admitirei desrespeito”, tuitou. “O deputado merece minha reprimenda pública por sua atitude”.

A preocupação de Lira faz todo sentido. No ano passado, a pesquisa anual A cara da democracia, realizada pelo Instituto da Democracia com financiamento do CNPq e da Fapemig, revelou que 46% dos brasileiros não confiam no Congresso. É fato que felizmente houve uma redução na avaliação negativa em relação a 2018, quando 58% da população dizia não confiar no Parlamento. Mas não é o momento de baixar a guarda na defesa do Poder Legislativo: o respeito à institucionalidade e aos Poderes da República é fundamento da democracia – e o País ainda se recupera dos efeitos do esgarçamento institucional patrocinado nos últimos quatro anos pelo governo de Jair Bolsonaro, que resultou na fracassada tentativa de golpe do 8 de Janeiro, quando criminosos invadiram e depredaram os edifícios-sede dos Três Poderes, na Capital Federal. Não dá para transigir ou contemporizar com situações de achincalhamento do Legislativo. As pessoas hoje com mandato parlamentar passam e devem ser punidas por suas infrações de acordo com o previsto no Código de Ética e Decoro. Já as instituições permanecem, e precisam ser preservadas.

Dias depois do lamentável episódio de transfobia protagonizado por Ferreira, durante uma reunião da Comissão de Segurança Pública o parlamentar foi chamado de “chupetinha” por André Janones (Avante-MG), antigo desafeto desde o tempo em que ambos se digladiavam na política regional de Minas Gerais. A cena fez parte do circo armado pela oposição na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para tentar constranger o ministro da Justiça, Flavio Dino, que havia comparecido na condição de convidado. “Olha a peruca”, “deixa a Nikole falar” e “vai, chupetinha” foram algumas das provocações ouvidas pelo mineiro. Por sua vez, Carla Zambelli (PL-SP), que nunca decepciona em matéria de baixaria, desceu mais alguns degraus e mandou o colega Duarte Júnior (PSB-MA) “tomar no…”. “É um caso clássico do uso da imunidade parlamentar como liberdade para ofender, sem acrescentar qualquer fato ou ideia ao debate democrático”, reagiu o socialista. Há duas semanas, Eduardo Bolsonaro (PL-SP) partiu para cima de Dionilso Marcon (PT-RS) e teve de ser contido pelos colegas após o petista dizer que era “fake” a facada que levou Jair Bolsonaro em 2018. “Decoro? Olha o que esse… está falando aqui”, berrava o filho 03. “Te enfio a mão na cara e perco o mandato com dignidade, seu filho da…”.

INSTINTOS PRIMITIVOS O filho 03 (à dir.) partiu para cima do petista Marcon (à esq.) durante discussão sobre facada em Jair Bolsonaro: “Te enfio a mão na cara” (Crédito:Divulgação)

“Não cabe a mim, como presidente da Comissão de Ética, individualizar nenhum processo que possa passar pelo colegiado”, esquiva-se Leur Lomanto Júnior (União Brasil), recém-eleito para a presidência da comissão, responsável pelos procedimentos disciplinares envolvendo deputados. “Mas é claro que essas situações geram constrangimento”, admite. Cerca de uma dúzia de representações foram protocoladas desde o início da Legislatura, mas até o momento nenhuma delas chegou à Comissão de Ética – todas permanecem na Secretaria-Geral da Mesa Diretora, onde são submetidas a uma espécie de análise preliminar. “Diversos parlamentares realmente têm se excedido; é legítimo cada um defender suas pautas, seus partidos e suas ideologias. Muitas vezes os debates são quentes, mas jamais se pode faltar com o respeito”, diz Lomanto. A Câmara dos Deputados, como representante do povo brasileiro por meio de mandato advindo de sufrágio universal, terá de agir com rapidez e rigor se quiser colocar um freio de arrumação no comportamento delinquencial dos parlamentares que teimam em fazer pouco caso da liturgia de um dos principais cargos da República.

“Muitas vezes os debates são quentes, mas jamais se pode faltar com o respeito” Leur Lomanto Júnior (União Brasil), presidente da Comissão de Ética da Câmara (Crédito:Cleia Viana/Câmara dos Deputados)