As más notícias se multiplicam para Jair Bolsonaro, que continua paralisado após ser nocauteado na eleição do ano passado. Depois do autoexílio improvisado na Flórida, ele esperava que seu retorno ao Brasil, no último dia 30, significasse uma volta por cima rumo a uma candidatura em 2026. Ao invés da acolhida triunfal nos braços do povo, teve uma recepção esvaziada. O primeiro compromisso sério não foi a micada apresentação na sede do PL, em Brasília, mas na Justiça. E o encontro aconteceu na quarta-feira passada, quando esteve na sede da Polícia Federal, em Brasília, para prestar depoimento sobre a entrada ilegal de joias avaliadas em R$ 16,5 milhões. E essa é apenas a investigação mais recente envolvendo o capitão. Ela pode acrescentar mais de 28 anos de pena aos crimes que já se encontram em apuração no STF. Ao todo, Bolsonaro pode ser condenado a mais de 92 anos de reclusão. Isso na área criminal. Antes disso, no entanto, a Justiça Eleitoral pode selar seu destino político. Na próxima semana, o Tribunal Superior Eleitoral já estará apto a julgar a ação mais avançada das 16 que correm contra o ex-mandatário nessa corte, tornando-o inelegível.

É um desfecho de pesadelo para Bolsonaro, que tem vagado como um espectro político após ser rifado pelo eleitorado. A fragilidade do governo Lula, que ainda tenta consolidar uma marca própria e reverter o cenário de terra arrasada legado pela gestão anterior, alimentou a esperança nas hostes bolsonaristas de que o ex-presidente poderia liderar a oposição e pavimentar o caminho do retorno ao poder. Ainda há um contingente grande de eleitores que admiram o ex-”mito”, é certo, sobretudo no espectro mais radical. Mas num cenário de normalidade institucional, para o qual o País caminha, fica cada vez mais claro que as opções do ex-mandatário diminuem dia a dia.

SEM MILITÂNCIA A PF teve forte segurança no depoimento de Bolsonaro, dia 5 (Crédito:Ton Molina)

No Congresso, a bancada mais conservadora que se elegeu em outubro na esteira da votação em Bolsonaro ainda precisa ser testada nas sessões que não se iniciaram até o momento. Mas, até agora, os membros fiéis ao capitão têm exibido apenas truculência (como os gritos e palavrões contra o ministro da Justiça, Flávio Dino, em depoimento a uma comissão) e exibicionismo infantil (caso do discurso transfóbico do deputado Nikolas Ferreira vestindo peruca).

Entre os líderes do Centrão, que de fato vão determinar o destino das votações, o espírito é de acomodação com o governo Lula. E o Planalto conseguiu o controle das principais comissões no Congresso. O bolsonarismo como grupo político dificilmente conseguirá preencher o espaço da oposição, pelo menos como grupo organizado institucionalmente.

NO STF O ministro Alexandre de Moraes é relator de cinco ações que podem condenar Bolsonaro (Crédito:Divulgação)

Falta de vocação

Para isso contribui a falta de vocação de Bolsonaro em articular propostas no Congresso ou mesmo uma agenda coerente, além de pautas de costumes conservadoras e propostas negacionistas. Seu método é disruptivo, nunca construtivo. O capitão teve uma carreira legislativa medíocre. Passou 28 anos no Congresso sem apresentar nenhum projeto relevante. Sempre buscou as manchetes com afirmações absurdas ou ações irresponsáveis. É certo que não vai conduzir nada parecido com um shadow cabinet, como são conhecidos no Reino Unido os membros da oposição encarregados de acompanhar o governo de plantão e apontar suas falhas, além de propor soluções alternativas. Bolsonaro, aliás, já declarou que não deseja isso. O sonho é atuar como uma espécie de andarilho, animando encontros com seguidores ou aparecendo em eventos populares.

A esperança do PL, partido de Valdemar Costa Neto que abrigou os seguidores de Bolsonaro, é conseguir domar o ex-presidente usando seu capital político para eleger mais prefeitos e vereadores nas eleições de 2024 e, talvez, ter um candidato competitivo em 2026. O fato de Bolsonaro já estar praticamente fora da próxima corrida presidencial, como o TSE deve confirmar, já faz a legenda procurar alternativas. A primeira é a própria ex-primeira-dama Michelle, grande aposta de Costa Neto. Outro que tenta se habilitar, mas pelo PP, é Ciro Nogueira, presidente dessa legenda do Centrão, que apostou tudo no bolsonarismo e pela primeira vez exerce o papel de oposição. Nos principais estados, os governadores simpáticos ao ex-presidente também se afastam, apesar do cuidado para não melindrar os eleitores conservadores.

“Bolsonaro ficou quase 100 dias absolutamente omisso em relação a Lula. Em seu primeiro dia de trabalho no PL, ganhando mais de 80 mil reais, sequer apareceu. Não é oposição, é apenas o saco de pancada do PT”, debocha o deputado Kim Kataguiri. “O ex-presidente não lidera mais nada. Até parlamentares do PL já dizem isto. E a maior prova foi a baixa adesão na recepção quando voltou”, alfineta o líder do PT na Câmara, Zeca Dirceu. E trocar as férias com chinelão na Disneylândia pelo ócio de uma mansão em Brasília não vai ajudar a mantê-lo em evidência. A patuscada não pode ser eterna e nem cria dinâmica política. O ex-presidente, que pela primeira vez fica sem um cargo público, já lida com a nova realidade. Está recluso desde que retornou. Ele nem de longe teve a recepção que esperava e que lhe foi prometida por aliados. Frustrado, recusou convites para eventos públicos nos últimos dias e tem dito que quer ficar com a família. No condomínio onde agora mora com Michelle e a filha Laura, a recepção foi igualmente discreta. Os vizinhos disseram à ISTOÉ que a chegada do ex-presidente ao local não promoveu mudanças significativas na rotina do condomínio, com exceção da primeira noite. “Está tudo normal. Apenas no dia da chegada dele que, de fato, tinha polícia rondando e a segurança foi reforçada. O máximo que vemos são algumas bandeiras do Brasil estendidas em apoio”, narra um residente sob reserva. Os apoiadores de Bolsonaro, PL à frente, passaram a se esforçar para bolar eventos que deem visibilidade ao ex-presidente. Cogitou-se retomar as motociatas, mas a estratégia é complicada na ausência do aparato oficial e sem as facilidades do cartão corporativo da Presidência. E muitos apoiadores fanáticos se decepcionaram com o sumiço de seu líder enquanto penavam nas portas dos quartéis, para não falar daqueles que ainda estão presos ou com tornozeleiras eletrônicas após o quebra-quebra de 8 de janeiro.

Pior, há uma frustração entre os conservadores, especialmente entre os evangélicos, diante de um personagem que encenava uma vida provinciana comendo pão com leite condensado enquanto acumulava com voracidade um butim multimilionário cortejando ditaduras pelo mundo. O caso das joias sauditas, especialmente, provoca danos à sua imagem, por isso o ex-presidente devolveu na véspera de seu depoimento o terceiro conjunto que havia angariado, avaliado em R$ 500 mil, incluindo um relógio Rolex cravejado de diamantes. Já tinha devolvido um kit de luxo com itens masculinos, além de armas. Esse cabedal tinha como peça mais vistosa o estojo de joias que se destinavam a Michelle, ainda retido pela Receita no aeroporto de Guarulhos. Bolsonaro chegou à sede da PF para depor sobre o caso na quarta, 14h10, e entrou pelos fundos. Na entrada, nem sinal de apoiadores. O depoimento ocorreu simultaneamente à oitiva de outros nove investigados, em São Paulo e Brasília, incluindo o coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens, e o ex-chefe da Receita Julio Cesar Vieira Gomes. O objetivo era evitar que os envolvidos combinassem versões. O caso ainda terá novos desdobramentos. Além dos crimes que cercam a obtenção dessas joias, chama a atenção da PF que integrantes do governo tenham visitado com frequência as terras sauditas – ao menos 150 vezes nos últimos três anos. Por isso, a PF deve abrir um inquérito especificamente para investigar a relação de Bolsonaro com o regime saudita e possível crime de corrupção. “Claramente, isso é lavagem de dinheiro. Ninguém dá presentes de quase R$ 20 milhões porque achou ‘bonitinha’ a cara do presidente. Isso é só a ponta do iceberg e tem muito ainda para ser investigado. Tem potencial para que Bolsonaro seja preso”, avalia um ex-aliado.
O inquérito das joias se consolida com os rastros deixados pelos auxiliares do ex-presidente. A PF já tem indícios concretos de envolvimento dele na tentativa de recuperar os presentes milionários. Um ofício assinado por Mauro Cid coloca a digital do ex-mandatário nas denúncias. “Está muito bem caracterizado que ele recebeu uma espécie de vantagem indevida. O que é mais grave é que isso ocorre quando ele ainda estava no cargo de presidente. Se nós avaliarmos esse caso pela mesma régua com a qual o Judiciário mediu as denúncias contra Lula, o ex-chefe do Executivo deverá responder pelo crime de corrupção”, avalia o criminalista João Marcos Braga, do escritório Braga de Melo Advocacia. E não se trata só do tesouro árabe. A PF está fazendo uma varredura sobre todos os presentes que o ex-inquilino do Planalto teria recebido, mais de 9 mil, para avaliar seu valor ou se eles se encaixam na previsão legal (uso “personalíssimo”).

As outras cinco investigações no STF, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, também complicam a vida do ex-presidente. Nos inquéritos, a Corte busca identificar se o ex-presidente interferiu na PF para favorecer os filhos, divulgou notícias falsas sobre urnas eletrônicas e contra o processo eleitoral, vazou dados sigilosos de investigações sobre ataques hacker ao TSE e se atuou como mentor da tentativa de golpe em 8 de janeiro (58% dos eleitores acham que ele tem responsabilidade, diz o Datafolha). Há, ainda, outro inquérito aberto a pedido da CPI da Covid. É a primeira vez em 32 anos que Bolsonaro enfrenta a Justiça sem se beneficiar do foro privilegiado. Por este motivo, o STF também remeteu este ano uma dezena de processos ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Cinco destas ações querem responsabilizar Bolsonaro por prática político-partidária em atos promovidos no 7 de Setembro de 2022. As outras trazem acusações de injúria e racismo cometidas durante falas e entrevistas do ex-titular do Planalto. “São diversas as denúncias. Os cinco inquéritos no STF contra o ex-presidente, neste momento, são preocupantes pelo volume probatório, pela somatória das penas e pelas implicações penais. É muito difícil dizer as consequências, mas os crimes e as penas são igualmente graves. Fora o desgaste à imagem”, avalia o advogado criminalista Ícaro Batista Nunes.

Se as consequências na seara criminal ainda vão demorar, no TSE tudo se precipita. Ao todo, 16 ações miram o ex-mandatário na Corte. As acusações variam desde abuso de poder político e econômico até uso indevido de meios de comunicação social e vazamento de dados sigilosos. A mais avançada, como já dito, é a ação movida pelo PDT e que trata da reunião entre o então titular do Planalto com embaixadores no Palácio da Alvorada, quando ele promoveu ataques infundados e levantou dúvidas à lisura do sistema eleitoral. É nessa ação em que está anexada a chamada “minuta do golpe” apreendida pela PF na residência do ex-ministro da Justiça Anderson Torres nas investigações do 8 de janeiro. E o aliado, cada vez mais encrencado com a Justiça, pode aumentar o calvário de Bolsonaro. A PF descobriu um “boletim de inteligência” com o mapa detalhado dos locais em que Lula foi bem votado no primeiro turno, produzido pela sua pasta, que teria servido para que Torres autorizasse a operação da Polícia Rodoviária Federal que, ao que tudo indica, retardou o trânsito de eleitores do PT no Nordeste no dia do pleito. Sua viagem à Bahia poucos dias antes do segundo turno também está sendo investigada pela PF e seria indício de tentativa de fazer a superintendência regional da corporação apoiar essa operação. Em mais um revés para o ex-presidente, há rumores de que Torres, que permanece preso e trocou seu time de advogados, estaria se sentindo abandonado. Ele pode comprometer o ex-chefe se decidir reduzir sua pena negociando uma delação premiada.

TENSÃO Situação do ex-ministro Anderson Torres se agrava com apuração da PF (Crédito:Cristiano Mariz)

No dia 31, o corregedor-geral do TSE, Benedito Gonçalves, concluiu o período da instrução processual da ação que poderá tirar Bolsonaro da corrida eleitoral. Nos próximos dias, o presidente da Corte, Alexandre de Moraes, deverá marcar a data para o julgamento. O ex-presidente terá um reforço na Corte com a chegada de Kassio Nunes Marques, indicado ao STF por ele, e que herdará a cadeira vaga com a aposentadoria antecipada de Ricardo Lewandowski. Muitos apostam que o ministro recém-chegado votará favoravelmente ao capitão. O histórico de votações do ministro aponta um claro alinhamento com o ex-presidente. Além de Nunes Marques, é esperado que o ex-mandatário também conte com o apoio do ministro Raul Araújo, o mesmo que proibiu manifestações políticas em um festival de música contra o então candidato à reeleição em 2022. Ao que tudo indica, os votos pró-Bolsonaro não serão suficientes para barrar a inelegibilidade do ex-presidente. Um dos poucos reticentes quanto a esse desfecho é o ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello. “Acredito que ele não será declarado inelegível. O julgamento maior foi feito pelo povo, que detém todo o poder, nas eleições”, diz. Ele critica o risco de “açodamento” e o “justiçamento” nos processos criminais, apesar de dizer que Bolsonaro “pecou muito pela boca”.

NO PÁREO? O PL aposta em Michelle para 2026, mas Bolsonaro descarta (Crédito:Gabriela Biló)

A aposta na condenação decorre dos recados que o TSE tem dado em julgamentos de ações semelhantes às que pedem a condenação do ex-presidente. Nos últimos tempos, a Justiça Eleitoral deu claros indicativos da disposição em condenar políticos por crimes contra o sistema eleitoral. “Seria inédito a Justiça Eleitoral condenar um ex-presidente. A gente tem visto que assuntos como estes que motivaram as ações contra Jair Bolsonaro têm recebido uma reação muito mais combativa e incisiva da Corte Eleitoral”, afirma o advogado eleitoral Caio Vitor Barbosa. Outro indicativo ocorreu ainda em fevereiro. Na ocasião, o TSE reduziu para 30 dias o prazo de devolução dos pedidos de vista na Corte. A medida impede que ministros peçam vistas de ações em andamento e não as devolvam. Há casos de ações na Justiça Eleitoral cuja tramitação supera décadas.

Direita sem liderança

Fora do jogo político, a tendência é de que Bolsonaro possa submergir, deixando a extrema direita carente por uma liderança. No que depender dele, nem mesmo a esposa terá chance em 2026. Recentemente, ele se mostrou enciumado com a possibilidade de a ex-primeira-dama concorrer no seu lugar ao Planalto, justificando que a companheira não tem “vivência política”. Para o PL, o risco de colar sua estratégia a Bolsonaro é reviver o que aconteceu com o PSL. Há quem aposte que vai se acentuar a divisão entre as alas mais bolsonaristas e os parlamentares mais descolados da figura do ex-presidente, em uma repetição do que ele protagonizou na legenda de Luciano Bivar. “Não há a menor dúvida de que Bolsonaro vai promover um racha no PL. Por onde ele passa, ele promove rachas. É o modus operandi dele, jogar um contra o outro. Ele fez muito isso durante seu governo”, diz a ex-deputada federal Joice Hasselmann, que viveu de perto o racha do PSL.

NO TSE O corregedor-geral Benedito Gonçalves (acima) e o ministro Kassio Marques (Crédito:GUSTAVO LIMA)
Divulgação

O destino de Bolsonaro, ironicamente, imita o do seu modelo americano, Donald Trump, que foi indiciado na terça-feira por crimes eleitorais ligados a propinas, tornando-se o primeiro ex-presidente americano a responder por crimes na Justiça em mais de 200 anos de democracia. O americano passou pelo vexame de encarar um tribunal em Nova York e tentou transformar o revés em oportunidade para animar sua militância e reavivar uma nova candidatura. Há dúvidas se conseguirá se safar da situação. É o mesmo caso de Bolsonaro, que tem o agravante de não exibir o talento do seu ídolo e ainda enfrentar uma situação muito mais complicada na Justiça. A criatura pode imitar o criador até na desgraça.