03/03/2023 - 9:30
A reconstrução do sistema educacional brasileiro é o foco do plano de trabalho a ser entregue pelo Ministério da Educação (MEC) ao presidente Lula antes do encerramento dos primeiros 100 dias do novo governo. Comandando a empreitada, está o ministro Camilo Santana que, antes de assumir a pasta, foi governador do Ceará e eleito senador pelo estado em 2022. Em entrevista à ISTOÉ, ele falou sobre os desafios para reverter a realidade de analfabetismo e evasão escolar no ensino público por meio de políticas sociais que compreendam as especificidades de cada região. “A educação precisa ser, acima de tudo, democrática, inclusiva e crítica”. Entre as ações estratégicas, estão: o incentivo à ampliação de escolas de ensino integral, classificadas como uma das prioridades da gestão e investimentos na área tecnológica, tanto para os professores como para os alunos. Em relação às escolas cívico-militares, defendidas pelo governo Bolsonaro, Santana diz que essas instituições não são prioridades para o ministério, que reavaliará a continuação dessa política. O ministro negou, ainda, a possibilidade da direção do FNDE ser entregue a partidos que buscam cargos para fortalecer a base governista no Congresso. Ele tangenciou ao falar sobre as críticas que petistas vêem fazendo ao ministro Haddad. “Críticas sempre haverão, mas isso faz parte da democracia.”
Apenas uma a cada três crianças é alfabetizada na idade certa no Brasil. Quais ações a curto e a longo prazo estão sendo tomadas para reverter essa realidade?
Concluímos a elaboração de uma proposta e a levaremos nos próximos dias ao presidente. É um grande programa de alfabetização na idade certa no Brasil, que só poderá ser realizado com apoio forte do Governo. Ou seja, com o papel do MEC, a liderança do presidente, convocando os governadores e prefeitos. Uma espécie de grande pacto nacional, mas sob a coordenação do MEC, não só do ponto de vista de apoio institucional, pedagógico, mas também de apoio financeiro. Estamos levando essa proposta na construção de uma grande rede baseada nas experiências de sucesso realizadas em alguns estados, inclusive no Ceará. Então, a gente quer agora, nestes 100 dias, lançar ou pelo menos ver se o presidente chancela esse programa. E aí eu quero percorrer os estados, conversar com os governadores, porque isso vai ter que ser uma adesão dentro do pacto federativo, entre a União e os municípios, para que a gente possa tirar o Brasil dessa triste realidade, de que apenas um terço das crianças aprendem a ler e a escrever na idade certa.
Uma das alternativas apontadas pelos técnicos é a ampliação das escolas de ensino integral. Há algum projeto em andamento nesse sentido?
O ministério tem várias ações importantes e várias políticas que estamos reformulando. Algumas ações emergenciais, como foi a ampliação de bolsas agora, que não eram reajustadas há mais de dez anos e a ampliação de bolsas de apoio à permanência dos estudantes nas universidades. Mas temos três pontos importantes como meta: o grande problema de alfabetizar na idade certa; o Programa de Escola de Tempo Integral; e a terceira é a conectividade. Vou até me adiantar sobre esses três pontos principais. No mundo de hoje, principalmente após a pandemia, que acelerou o processo de conectividade, de acesso à tecnologia no mundo digital, é impossível não ter hoje todas as escolas conectadas no Brasil. E não é só levando a internet. Tem que ter conexão com o acesso a equipamentos de professores e alunos, tendo uma plataforma pedagógica para reforçar o aprendizado.
O Brasil tem mais de 1 milhão de crianças que deveriam estar na sala de aula, mas não estão. Muitas ficaram fora durante a pandemia ou tiveram um ensino precário à distância. Qual o tempo estimado para recuperar esse tempo perdido?
Esse programa que estamos sugerindo ao presidente vai em duas linhas: a de garantir que daqui para frente a gente possa corrigir essa distorção e que o aluno que termine o segundo ano sabendo ler e escrever. E a outra é recuperar essa defasagem das crianças, principalmente as que foram prejudicadas nesses dois anos da pandemia. Então, esse é um trabalho que exige um esforço maior para que a gente possa trabalhar nessas duas linhas: recuperar esse tempo perdido e garantir que daqui para a frente as crianças aprendam e essa distorção diminua.Temos realidades regionalmente diferentes no Brasil. Dentro do próprio estado você tem realidades diferentes, dentro da própria região. Tem estados com distorção de 35% ou mais de idade e série do aluno e tem estados com 6% nessa distorção. Qeremos que nos próximos quatro anos a gente possa corrigir isso. Não sei se daqui a quatro anos 100% das crianças estarão aprendendo a ler e a escrever. Se todos aderirem, construírem essa pactuação, se unirem, a gente pode dar um grande salto.
O governo tem destinado verbas adequadas à Educação, mesmo com a dificuldade de recursos?
O orçamento deste ano está praticamente amarrado porque ele foi aprovado no governo passado. Tivemos uma margem de melhora no orçamento, no final do ano, com a PEC da Transição, que tirou o Bolsa Família do teto de gastos. Com isso, possibilitou que alguns recursos fossem suplementados e uma dessas áreas foi a Educação. Recebemos um incremento de cerca de R$ 10 bilhões para o MEC, mas isso está longe de corrigir toda a defasagem ao longo dos últimos quatro anos, com o desgoverno Bolsonaro, que não olhou para a Educação, que não priorizou o ensino e desmontou políticas públicas. A primeira coisa que estou fazendo aqui é abrir as porta do MEC para o diálogo e para a cooperação federativa. Eu fui governador e eu senti na pele, nos últimos quatro anos, a falta de diálogo com o Ministério da Educação. E olha que o Ceará é um estado de referência na educação brasileira.
Há criticas sobre a reforma no ensino médio aprovada no governo Temer. Alguns especialistas dizem que ela limita as escolhas dos estudantes e aumenta as desigualdades. Como o MEC enxerga a mudança feita?
A gente compreende que faltou mais diálogo e discussão na implementação do novo ensino médio. A orientação que temos dado a toda a nossa equipe é fazer uma reavaliação. Estamos aí criando um grupo de trabalho, convocando entidades representativas dos setores, professores e alunos. Há uma preocupação muito grande, pois há realidades muito distintas em relação a regiões, estados e municípios. E aí você pode criar uma distorção, não dando as mesmas oportunidades para os jovens de todas as escolas brasileiras e isso aumentar as desigualdades. Podemos construir parcerias com outros sistemas, como o Sistema S. A ideia não é a crítica só pela crítica. A ideia é que a gente possa fazer uma reavaliação, convocando especialistas e a comunidade acadêmica, para que a gente possa corrigir isso e ver no que é possível melhorar.
A política econômica do ministro Fernando Haddad está sendo criticada até pelo PT. O senhor acha que o partido está “fritando” o ministro?
A relação do ministro Haddad com o partido é a melhor possível. Essa semana tivemos uma reunião de trabalho do MEC com o Ministério da Fazenda e em relação à Educação o relacionamento é bom. Até porque Haddad sabe da importância da Educação para o País, pois foi ministro da Educação por quase oito anos. Nesse período, o Brasil deu um salto significativo. O grande problema é que o orçamento, já que ele não foi construído por este governo. A partir do próximo orçamento, vamos discutir com a Fazenda, com o Planejamento e com o presidente Lula, todos os programas que vão precisar de aumento de recursos para os anos seguintes. Uma série de investimentos serão feitos. Não tenho dúvida que contarei com o apoio do ministro Haddad, que considero uma pessoa extraordinária, capacitada para dirigir a economia nesse momento do nosso País.
Mas e as críticas do PT ao trabalho dele?
Críticas sempre haverá. Vai ter críticas no MEC e em várias áreas do governo, mas eu sempre digo que isso faz parte da democracia.
O governo anterior incentivou a criação de escolas cívico-militares e hoje por todo o Brasil explodem denúncias sobre a imposição de um modelo ultrapassado de ensino. Esse programa vai acabar?
Não será uma prioridade do ministério. Inclusive já extinguimos a diretoria que tratava desse programa. Solicitei à área da Secretaria de Educação Básica do Ministério que faça uma reavaliação dessa política, até porque já tem escolas funcionando em vários estados. Nós vamos ouvir os governadores, vamos ouvir os secretários, para que a gente possa tomar as decisões em relação a essa política e sobre esse programa que foi criado no governo passado.
Na gestão anterior, o FNDE foi alvo de muitas denúncias de corrupção. O que já foi identificado sobre irregularidades nessa pasta?
Primeiro, o FNDE está passando por uma auditoria por parte do Tribunal de Contas e eu, quando cheguei ao ministério, solicitei à AGU uma auditoria em todos os setores, e principalmente, com foco no FNDE por conta das denúncias que se tornaram públicas. Acho que é importante aprofundar o que aconteceu no órgão. O que aconteceu é que o MEC era simplesmente direcionado para interesses políticos e partidários. Então, esse foi um grave problema que aconteceu também dentro do FNDE. Trouxemos uma pessoa altamente experiente na área de cuidar da parte de gestão e que está reorganizando o fundo, levantando todas as políticas que foram desmontadas lá dentro e todas as obras superfaturadas. Temos obras que estão há mais de dez anos paralisadas ou inacabadas. Estamos com um arcabouço jurídico legal para ser aprovado para que a gente possa retomar essas obras, com negociação com os prefeitos e governadores. E garantir que as creches sejam concluídas e que as escolas sejam acabadas.
Partidos do Centrão têm pedido cargos no setor da Educação para aderirem ao governo. O senhor aceita participar dessas negociações?
Todos os cargos já estão preenchidos. Na diretoria, grande parte já foi nomeada e a equipe está definida. Todos os cargos das secretarias aqui do ministério, os cargos do FNDE, do Inep, da Capes, são definidos por critérios técnicos. Eu não tenho nada contra a política, até porque eu sou político. Mas as pessoas precisam ter um perfil adequado para assumir determinadas funções, como liderança, competência e conhecimento.