Paciência. A palavra mais usada nos primeiros meses do governo Lula era uma virtude em falta na semana passada em Brasília e em São Paulo, no campo e na cidade, no Planalto e no Congresso. Uma certa impaciência, temperada pela violência, assombrava o cenário político e a economia do País, a partir de episódios que assustaram pelo inusitado e pelo precedente. Na segunda-feira 21, em Brasília, três centenas de juízes pronunciaram uma “sentença”, em causa própria, inédita nos 114 anos de República: bateram de frente com a opinião pública, anunciando a primeira greve da história do Judiciário, em protesto contra a reforma da Previdência.

Os representantes de 17 mil juízes prometem greve de uma semana a partir do dia 5. Na terça-feira 22, os homens da toga ganharam a adesão dos 12.800 membros do Ministério Público. A reação do governo foi fulminante: o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, antecipou para quarta-feira 23 a votação do relatório do deputado José Pimentel (PT-CE) na comissão especial da Previdência. Para prevenir surpresas, o Planalto montou uma tropa de choque à FHC: 12 deputados aliados pouco confiáveis foram substituídos, em questão de minutos, para garantir a vitória. O Planalto acredita que a aprovação das reformas vale o atual desgaste político. As mudanças constitucionais somadas à paciente administração das taxas de juros, segundo o governo, vão preparar o terreno para o crescimento econômico. “Temos consciência de que o País vai crescer. Acredito que com a aprovação das reformas nos próximos 60 dias a situação vai melhorar”, aposta José Dirceu.

Na mesma quarta-feira, o inusitado ficou por conta do Congresso. Para conter os funcionários contrariados com a reforma, o presidente da Câmara, o petista João Paulo Cunha (SP), perdeu a calma e pesou a mão: colocou dentro do Congresso o Batalhão de Choque da PM de Brasília. Homens de preto, armados de escudo e cassetete, se postaram no corredor de costas para a Comissão de Constituição e Justiça e de peito aberto para a Comissão da Previdência. A visão de soldados desfilando no Parlamento foi demais para a paciência dos políticos, que condenaram em coro a atitude. No dia seguinte, Cunha chorou numa cerimônia pública no salão nobre da Câmara: “Estou triste e só”, desabafou. Ele comentou com amigos que a situação saiu do controle após um manifestante ter sido preso e arrastado por seguranças da Casa.

São Paulo também botou a paciência nacional à prova na tensa quarta-feira 23. No terreno da Volkswagen em São Bernardo do Campo, invadido por sem-teto, o sangue correu: um fotógrafo da revista Época, foi morto com um tiro no peito à queima-roupa. A tolerância nacional voltaria a ser testada naquele dia pela frieza do Banco Central, que reduziu em apenas 1,5 ponto porcentual a taxa anual de juros, cravada em 24,5% – muito acima do que esperavam empresários e trabalhadores. Sem paciência, o coração da indústria – o setor automobilístico do ABC – jogou a toalha: num intervalo de poucas horas, Volkswagen e General Motors anunciaram cortes. As negociações, lideradas pelo presidente da CUT, Luiz Marinho, sustaram as demissões.

Zona de tensão – O empurra-empurra no Congresso ameaçava romper a barreira da PM, por volta do meio-dia da quarta-feira, quando passou por ali a deputada e juíza Denise Frossard (PSDB-RJ). Ela procurou o chefe da PM: “Soldado, onde está sua identificação. Ele não me respondeu. Os PMs de Vigário Geral também não tinham tarjeta”, contou ela a ISTOÉ. A assessoria da PM do DF negou ter havido ordem do comando para esconder a identidade. Apesar do apitaço dos servidores, a tropa de choque do governo na comissão foi eficiente. Aguentou a obstrução de quase seis horas da oposição e, no final da noite, aprovou por voto simbólico sem mudanças o parecer do relator. No fundo da sala, cerca de 30 manifestantes, de costas para o plenário, faziam um protesto mudo contra a reforma. Eles só ocuparam as galerias por força de liminar do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Maurício Corrêa.

A ordem soou como uma afronta ao Congresso. O presidente da comissão, Roberto Brant (PFL-MG), disse que o STF estava interferindo no Legislativo. Corrêa, como seus colegas de tribunal, anda injuriado com o subteto de 75% do salário de R$ 17 mil de ministro do STF para os juízes estaduais. Eles exigem que o subteto seja limitado a um mínimo de 90,25% dos salários do Supremo. Dentro ou fora do Congresso, ninguém apóia a greve de juízes – condenada até pelos tribunais superiores, escancarando uma inédita fissura no Judiciário .

Insuflado pelo senador Jorge Bornhausen, presidente do PFL, Corrêa quer a aprovação de uma emenda que eleve de 70 para 75 anos a aposentadoria compulsória no serviço público. Com isso, ele, que vestiria o pijama em abril de 2004 ao completar 70 anos, esticaria seu mandato até 2005. O líder José Carlos Aleluia (PFL) já comunicou ao ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, que o partido apoiará a proposta. A escassa paciência no Legislativo e no Judiciário parece ter contaminado o Executivo. Horas antes do choque no Congresso, o ministro José Dirceu esfriou o café da manhã com senadores, na casa do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), ao espargir pessimismo sobre a reforma: “Do jeito que está, ela não agrada nem ao presidente Lula nem a mim”, admitiu. Contrariando Lula, Dirceu avisou que os primeiros resultados do espetáculo do crescimento, anunciado para julho, deve demorar um ano e meio. “Tenham paciência!”, rogou aos aliados.

No início da tarde, quando a PM já se retirara do Congresso, entrava em cena a repercussão da decisão do BC de baixar a taxa básica de juros (Selic) em metade do que se esperava. “Fiquei decepcionado”, condenou o deputado Delfim Netto (PP-SP). “A economia vai se desacelerar por mais tempo”, lamentou o presidente da Fiesp, Horacio Lafer Piva. “A redução foi insuficiente e conservadora”, ecoou o presidente da CUT, Luiz Marinho, de olho no recorde de desemprego registrado em junho nas seis maiores cidades do País: 2,7 milhões de pessoas.

Enquanto a impaciência imperava no Congresso e no tumulto no ABC, Lula mantinha a calma. Realizou um cordial encontro com 20 grandes fazendeiros. “Não vamos permitir ilegalidade, de um lado ou de outro”, tranquilizou Lula, no salão onde reluzia a ausência do ministro da Reforma Agrária, Miguel Rosseto, ocupado com as ameaças de invasão do MST pelo País. Contrastando com o apelo de paz de Lula, o líder do MST, João Pedro Stédile, pôs lenha na fogueira: “A luta camponesa abriga 23 milhões de pessoas. Do outro lado, há 27 mil fazendeiros. Será que mil perdem para um? É muito difícil. O que nos falta é nos unirmos, para cada mil pegarem um. Não vamos dormir até acabarmos com eles.” O PT pediu serenidade e a UDR ameaçou com processo. “Não violem a lei e a Constituição, não duvidem da autoridade do governo. Hipótese zero de se tolerar qualquer abuso”, reagiu Dirceu.

Cabeça fria – A intolerância foi reforçada com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que invadiu o terreno da Volkswagen. Na segunda-feira 21, no centro de São Paulo, numa ação coordenada, três mil pessoas invadiram quatro prédios particulares – um deles o antigo Hotel Danúbio. O governador Geraldo Alckmin ironizou, provocando: “É o espetáculo da invasão, que agora é por hora.” Naquela madrugada, os sem-teto tentaram quebrar os cadeados de um prédio no centro da capital, invadido duas vezes nos últimos seis meses. No final da manhã, o grupo Silvio Santos, dono do prédio, cobriu os portões de ferro com um muro de tijolo e cimento.

Nesse clima, muita gente estranhava que o PT que confraterniza com o MST é o mesmo PT que chama a tropa de choque da PM para dentro do Congresso. O cientista político Walder de Góes provocava: “De repente, nos perguntamos: quem é o Lula? Ninguém mais sabe direito.” Mas o presidente parece responder às críticas seguindo a cartilha do chinês Confúcio. Além de calma e de alma, entre outras virtudes, o filósofo recomendava: “Deve-se ter sempre a cabeça fria, o coração quente e as mãos estendidas.” Lição que, neste momento, pode ser útil a todos.

 

Morte e mistério na invasão

La Costa, o repórter-fotográfico Luís Antônio da Costa, tinha 36 anos de idade e quase 20 de profissão. Ele morou no Japão durante dez anos e trabalhou, por exemplo, na cobertura de um terremoto que atingiu a cidade de Kobe, em 1995. Triste ironia. Sobreviveu a diversas circunstâncias arriscadas pelos países onde andou e morreu baleado de forma estúpida e banal em frente a um acampamento de sem-teto em São Bernardo do Campo (SP). La Costa cobria a invasão de um terreno de 224 mil metros quadrados por cerca de cinco mil integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Na tarde da quarta-feira 23, ele conversava com um grupo de colegas em frente ao portão do terreno ocupado quando um homem se aproximou, tentou levar sua câmera, sacou uma arma, atirou em seu peito e correu no meio da multidão. Minutos antes do assassinato, três assaltantes haviam furtado um posto de gasolina a cerca de 150 metros do local. Levaram R$ 60.

O assaltante do posto e suposto algoz de La Costa foi fotografado com a arma em punho por André Porto, do jornal Agora. Uma das hipóteses aventadas pela polícia é a de que o repórter assassinado teria visto o assalto ao posto e o ladrão, temendo ter sido fotografado, tentou pegar sua câmera e o matou. Aproveitando-se do terreno lotado, fugiu com facilidade. A dona do posto e seu filho chegaram a perseguir o assaltante. Ele diz que o homem que furtou o posto é o que aparece na foto de Porto com um revólver 38 na mão. A revista Época, na qual Costa prestava serviços como free-lancer, afirma que o repórter usava duas máquinas fotográficas no dia do crime: uma digital e outra analógica, que desapareceu. Na digital, não havia imagens do assalto.

Os sem-teto negam que o assassino seja integrante do movimento. No dia do crime, eram mais de quatro mil pessoas no acampamento. Ou seja: era impossível controlar a entrada no terreno. “Não dá para fazer filtragem”, admitem os próprios coordenadores da ocupação. Na quarta-feira 23, o MTST estava dificultando a entrada da imprensa na área cercada. Todos tinham passagem livre, exceto jornalistas. A medida foi tomada depois que a Rede Globo veiculou a entrevista de uma acampada que dizia ter casa e que só estava lá para conseguir um pasto para criar gados. O delegado Roberto Avino, de São Bernardo do Campo, acha improvável a relação entre o assassinato e o movimento. “Pessoalmente, acho que dificilmente alguém do movimento iria matar um jornalista para se vingar de reportagens indesejáveis”, arrisca o policial, que colheu depoimentos de seis testemunhas, inclusive os jornalistas que estavam com La Costa.

Militantes do MTST e políticos ligados a partidos de esquerda, como o PCdoB e o PSTU, penduraram uma faixa com palavras de condolências na cerca do terreno e organizaram um ato ecumênico na quinta-feira 24 em homenagem ao repórter fotográfico assassinado. La Costa era casado há 13 anos, tinha dois filhos pequenos: Julia, três anos, e Vinícius, dois. Seu corpo foi enterrado na quinta-feira em Borda da Mata (MG), onde nasceu.

Juliana Vilas

 

 

Morte e mistério na invasão

O vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Edson
Vidigal, 59 anos, ao contrário de seus colegas, não abusa do latim para emitir seus juízos. Vício do jornalismo, que ele exerceu nos idos de 70 como repórter de jornal e revista, em plena ditadura Médici, Vidigal tem uma prosa fluente, franca e direta para fazer seus julgamentos. Aqui, um exemplo:

ISTOÉ – A greve dos juízes é blefe?
Edson Vidigal
– Acredito que sim. Até porque uma paralisação tão reduzida, de apenas oito dias, não dá para sentir. A Justiça é tão morosa que ninguém vai perceber os efeitos da greve, se acontecer.

ISTOÉ – Qual o dano de uma greve do Judiciário?
Vidigal
– Somos 170 milhões no Brasil e temos menos de mil juízes federais. Somando todos, até os de futebol, não chegaremos a 17 mil juízes no Brasil. Temos Justiça de menos e juiz de menos. O que mais prejudica a imagem do Judiciário é um burocratismo extremamente danoso à vida das pessoas.

ISTOÉ – O que perde um juiz em greve?
Vidigal
– O Executivo arrecada e recebe, nomeia e demite. O Legislativo tem a competência e a iniciativa de fazer leis. O Judiciário não tem nada. Trabalha com a lei que não é ele que faz, opera recursos que não são dele. A arma do juiz é sua força moral.

ISTOÉ – Quem vai julgar se a greve dos juízes é legal?
Vidigal
– Esta greve é pura e simplesmente inadmissível,
porque ela é inconstitucional. Esta hipótese só pode ser
imaginada no cinema. É fantasia.

ISTOÉ – O que está por trás disso é a defesa do próprio bolso?
Vidigal
– Vivemos tempos em que as pessoas trabalham sob o império do medo, ganham dinheiro em cima do medo…

ISTOÉ – Com medo do quê?
Vidigal
– De perder salário e poder…

ISTOÉ – De perder privilégios?
Vidigal
– Ganhar um pouco mais não é um privilégio. O juiz é apenas diferente, sujeito aos mais diversos impedimentos: ele não pode ser sócio, não pode comprar, não pode vender. Em contrapartida, não pode fazer greve.

ISTOÉ – A reação nos Estados não reflete o medo de ver cortados em 50% salários de até R$ 30 mil?
Vidigal
– É bom que isso aconteça para que se tenha uma noção de como é mentiroso o pacto federativo. Um desembargador estadual ganhando mais do que um ministro do Supremo mostra, por si, o absurdo da situação.

ISTOÉ – O confronto não pode derrubar a reforma?
Vidigal
– Não acredito que a gente chegue a este confronto. A minha opinião não expressa a maioria do Judiciário, e a do dr. Cláudio Baldino Maciel, muito menos.

ISTOÉ – Mas ele é o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)… (e votou a favor da greve)
Vidigal
– Ele é presidente de uma entidade corporativista.

Luiz Cláudio Cunha

 

 

O Copom dita seu ritmo

Deu a lógica. Reunido na quarta-feira 23, o Comitê de Política Monetária (Copom) fixou em 24,5% a taxa básica de juros da economia brasileira. O corte, de 1,5 ponto porcentual, foi creditado ao bom comportamento dos índices de inflação. De fato, não há sequer um indicador que tenha registrado repique nos preços nas últimas semanas. Apesar de ter agido exatamente como previsto pela maioria dos analistas e de ter realizado o maior corte desde junho de 1999, o Copom deixou no ar a sensação de que seu ato foi apenas suficiente. Um movimento mais ousado teria sido mais bem recebido, principalmente pelo setor produtivo. “O corte ficou abaixo da expectativa”, resume Paulo Skaf, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit). Até o mercado financeiro, conservador de nascença, ameaçou reclamar.

Refratário a críticas externas, o Copom, mais uma vez, deu mostras de sua cautela (excessiva para uns, necessária para outros) na condução da política econômica e sinalizou que a retomada se dará a um ritmo lento. Não houve indicação do chamado viés, o que significa que um novo corte só poderá acontecer no dia 20 de agosto. Nem houve a redução do empréstimo compulsório, uma canetada que irrigaria o crédito com alguns bilhões de reais em poucas horas. Tampouco os juros reais (a taxa básica subtraída da projeção de inflação) se mexeram de forma significativa e permaneceram em torno dos mesmos 16% verificados no mês passado.

A fama de durão do Copom ainda foi reforçada por uma coincidência:
a divulgação da taxa de desemprego calculada pelo IBGE – 13% da população economicamente ativa, um novo recorde – ocorreu com poucas horas de diferença. O alento para os 2,73 milhões de desocupados contabilizados pelo instituto é que os juros vão
continuar recuando, salvo tragédias ocasionais. “Um patamar da
ordem de 19% a 20% ao ano no final de 2003 é algo bastante provável”, diz um relatório de análise do Lloyds Bank. Até lá,
serão mais cinco reuniões do Copom.

João Paulo Nucci