Deveria ser um vôo de rotina, mas no “Dia da Mentira” é tradicional a quebra do rotineiro. No domingo 1º de abril, a aeronave EP-3E Aries II decolou de uma base da Marinha americana no Pacífico para fazer uma viagem de baixa velocidade sobre a costa do Sul da China. Seria, como sempre, acompanhada por dois caças F-8 da Força Aérea chinesa, que monitora estes “passeios”. O Navy EP-3E Aries II é a mais sofisticada aeronave espiã do arsenal dos Estados Unidos, e suas missões em águas internacionais perto do território chinês têm como propósito bisbilhotar os movimentos militares naquele país. A rotina começou a ser quebrada quando, numa manobra atabalhoada, um dos caças se chocou contra a asa direita do avião-espião. O acidente danificou um dos quatro motores da nave americana e derrubou o caça chinês, forçando seu piloto a saltar de pára-quedas no mar. O destino havia pregado uma peça de mau gosto nos envolvidos, armando uma batalha diplomática que lembra os piores momentos da guerra fria, como o famoso episódio envolvendo o avião de espionagem americano U-2, ocorrido no dia 1º de maio de 1960. A derrubada dessa aeronave pelos soviéticos em Sverdlovsk, a prisão do piloto Francis Gary Powers e a exigência da URSS de um pedido de desculpas dos EUA levaram ao fracasso uma cúpula que estava marcada para 15 dias depois entre o presidente americano, Dwight Eisenhower, e o dirigente soviético, Nikita Kruschev. Eram tempos perigosos num mundo dividido entre duas superpotências nucleares.

Apagando segredos – Enquanto o comandante do EP-3E fazia um pouso de emergência nas pistas da base aérea chinesa da ilha de Hainan, seus 23 companheiros de tripulação trabalhavam desesperadamente para apagar todas as informações contidas nos sofisticados aparelhos espiões a bordo. “Se os chineses colocassem as mãos naquelas informações, estariam desvendando os segredos do aparelho e ainda ficariam sabendo tudo o que conhecemos sobre seus próprios segredos. Este seria o pior desastre”, disse o analista militar Adam Morgan, reservista da Marinha americana. Até agora, o governo dos Estados Unidos não revelou o quanto desses segredos caíram em mãos chinesas, mas sabe-se que a tripulação conseguiu apagar grande parte da memória de seus computadores. Os 24 membros da equipe pousaram em segurança e foram imediatamente detidos pelos chineses. A primeira reação do governo de Pequim foi de espanto, seguida de mostras de boa vontade para resolver o incidente. Em Washington, o presidente George W. Bush imediatamente pediu a libertação da tripulação e da aeronave, que ele esperava não fosse violada pelos militares chineses. A essa altura, o Pentágono já sabia que um enxame de técnicos da base de Hainan estava xeretando tudo o que podiam sobre o precioso presente que lhes caiu do céu.

O passar do tempo foi criando tensões e acirrou antagonismos. Na segunda-feira 2, o presidente Bush endureceria a retórica exigindo o retorno “imediato” da nave e de sua tripulação. Os chineses, cuja cúpula política é notoriamente dividida entre linhas-duras e moderados, discutiam a melhor forma de tratar do assunto. Por um lado, a iminente entrada da China na Organização Mundial de Comércio (OMC) e as aspirações do país em ser anfitriã dos Jogos Olímpicos de 2008, recomendavam posições brandas. Mas a retórica americana deu combustível ao fogo dos duros de Pequim. Quando, na quarta-feira 4, as buscas infrutíferas do piloto do F-8 reforçaram a convicção de que ele estaria morto, a diplomacia chinesa mandou às favas a moderação e o presidente Jiang Zemin chamou os EUA de arrogantes, acusou os americanos de terem causado o acidente e exigiu um pedido formal de desculpas. O secretário de Estado americano, Colin Powell, imediatamente disse que não havia necessidade de desculpas. Mas, no dia seguinte, mudou o tom agressivo e fez um pronunciamento “lamentando” o acidente.

“Os dados da agência de controle de tráfego aéreo americana são negativos para os chineses. Os pilotos daquele país são os campeões mundiais absolutos de acidentes. O que lhes confere o duvidoso título de piores pilotos do mundo”, diz o analista militar Morgan. “Por outro lado, as exigências americanas de que o EP-3E não seja vasculhado pelos militares chineses perde muito sua força, tendo em vista que os Estados Unidos sempre fizeram exatamente o contrário. Em 1976, por exemplo, um piloto soviético fugiu para o Japão levando um caça MiG-25. A despeito dos protestos de Moscou, técnicos de inteligência americanos desmontaram a aeronave durante nove meses e a devolveram em partes, dentro de caixas”, conta Morgan.

Representantes da embaixada dos Estados Unidos na China tiveram acesso aos 24 presos, mas não obtiveram promessas de libertação rápida. No Congresso americano já se formava uma coalizão bipartidária propondo endurecer ainda mais o jogo com Pequim, aprovando a idéia da administração Bush de vender mais armamentos a Formosa, inclusive os sofisticados mísseis de defesa terra-ar que complicariam os planos de uma possível invasão daquela ilha por forças da China. Esse é exatamente um dos maiores espinhos nas relações bilaterais e a questão certamente vai agravar ainda mais
a fúria chinesa. Assim, o episódio no “Dia da Mentira” acabou
se transformando no primeiro grande teste de política externa
do governo George W. Bush. Até agora, seu plano de vôo indica muitos acidentes de percurso pela frente, com perigosas chances
de colisão.

Estilo turbulento

O estilo de Bush parece indicar a volta da diplomacia
dura da era Ronald Reagan

O bombardeio do Iraque foi uma ação condenada
pelos aliados europeus dos EUA

A Casa Branca expulsou 50 diplomatas russos acusados
de espionagem, num episódio que lembrou a guerra fria

Bush irritou europeus e japoneses ao rejeitar o protocolo
de Kyoto, que previa a redução da emissão de poluentes

Manual do “bushismo”

As loiras e os poloneses respiram aliviados. Ultimamente, o maior alvo de piadas nos Estados Unidos é o presidente George W. Bush e sua mania de assassinar a língua inglesa. “As nossas crianças está (sic) aprendendo” e “Cada vez mais importações vêm do Exterior” são algumas das pérolas do chefe da nação mais poderosa do mundo. O estilo Vicente Matheus do político americano já ganhou até apelido – bushismo – e manual. O jornalista Jacob Weisberg, da conceituada revista Slate, compilou as mais famosas tiradas do republicano no recém-lançado George W. Bushisms – The accidental wit and wisdom of our 43rd president (O humor e a sabedoria acidentais do nosso 43º presidente), da Simon & Schuster. Está para ser publicado um dicionário inglês-bushismo-inglês. Pérolas: “O homem e o peixe podem coexistir pacificamente”, “Uma das melhores coisas dos livros é que às vezes eles têm fotos fantásticas” e “Claramente isso é um orçamento. Está cheio de números”. Essas e muitas outras declarações de Bush deixaram seus interlocutores atônitos. O mandatário tem a quem puxar. Seu pai, o ex-presidente George Bush, foi o pioneiro dos bushismos. Bush pai imortalizou asneiras do tipo: “Não é exagero dizer que os indecisos podem ir por um caminho ou por outro.” Mas, como nos ensina uma das máximas de George W. Bush: “O passado já passou.”

Patricia Campos Mello, de Nova York