17/03/2004 - 10:00
Há quase um mês, uma polêmica se alastra pelo Brasil: o governo acertou ou não ao editar a medida provisória que determina o fechamento dos bingos e proíbe as máquinas de jogos eletrônicos em todo o País? Os que condenam a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva argumentam com números fortes, capazes de se transformar em superpoderosos numa nação cuja maior preocupação é o desemprego. Afirmam que as 1,1 mil casas de bingo no Brasil movimentam R$ 5 bilhões por ano e são responsáveis por cerca de 120 mil postos de trabalho diretos e outros 200 mil indiretos. Do outro lado, os defensores do fim da jogatina usam argumentos pesados. Alegam que boa parte dos proprietários das casas lava dinheiro do tráfico de drogas, está ligada às máfias internacionais e é mestre nas artes de sonegar impostos e de remeter irregularmente divisas para o Exterior.
O combustível para a maior parte dessas acusações vem dos processos judiciais italianos números 15020/96R e 17974/97R, gerados pela Operazione Malocchio (operação mau-olhado), uma série de investigações comandada pela Direção Investigativa Antimáfia (DIA) contra associações ligadas ao tráfico de drogas e à lavagem de dinheiro. Esses processos deram origem a várias cartas rogatórias distribuídas pelo mundo, entre elas uma que pousou na Justiça brasileira no final de 1998. No caso do Brasil, o objetivo era descobrir se havia participação intencional na lavagem de dinheiro por meio da jogatina de empresários instalados no País, particularmente do espanhol Alejandro de Ortiz Fernandez e de seus filhos brasileiros Alejandro de Viveiros e Johnny Viveiros Ortiz. Isso porque a família, que importava máquinas de jogos eletrônicos da Espanha com autorização do governo, teve como sócios o siciliano Lillo Rosario Lauricella, o calabrês Julian Filippeddu e seu irmão François, nascido na Córsega. Os três faziam parte de uma associação liderada pelo mafioso Fausto Pellegrinetti, que, segundo as investigações da Operazione Malocchio, arrecadou US$ 40 milhões com atividades ilegais. Deste total, US$ 10 milhões vieram parar no Brasil, aplicados na compra de cerca de 35 mil máquinas de jogos.
Durante oito dias, entre 1º e 8 de março, a reportagem de ISTOÉ percorreu tribunais italianos para saber o desfecho desses dois processos. Para isso, contou com a assessoria de um dos mais conceituados escritórios de advocacia do país, de Paulo José da Costa Jr. e de seu filho Fernando José da Costa. O primeiro, 79 anos, é professor titular de direito penal da Universidade de São Paulo (USP), professor livre-docente da Universidade de Roma, doutor honoris causa pela Universidade Católica Portuguesa, diretor das Faculdades Integradas de Guarulhos (FIG) e cidadão italiano nomeado por méritos pelo atual governo. Escreveu 52 livros, 42 deles jurídicos. Fernando segue o caminho do pai. Aos 30 anos, é mestre em direito penal e professor da Fundação Armando Álvares Penteado, a Faap.
Sentenças – A primeira sentença, um calhamaço de 280 páginas divulgado em 9 de março de 2001, condena 58 pessoas a penas variadas. Entre elas não há nenhum empresário instalado no Brasil. A segunda decisão, proferida pelo Tribunal de Apelação de Roma em 14 de junho de 2002, aumenta algumas penas e diminui outras. De novo, nenhum empresário em atividade no Brasil é mencionado. No dia 6 de fevereiro último, a Justiça italiana publicou o acórdão do Tribunal de Cassação, a mais alta corte de Justiça da península. Foi a sentença de terceira e última instância para os dois processos instaurados pelo procurador Pietro Saviotti, também signatário da carta rogatória enviada ao Brasil. Com as três sentenças na mão, os advogados brasileiros fizeram uma varredura em cartórios e na Procuradoria da República italianos para descobrir se havia alguma outra investigação em curso envolvendo os três empresários da família Ortiz. Depois de três dias de peregrinação, juntaram nove atestados, todos negativos. “Todas as instâncias foram rastreadas e nada consta contra a família na Itália”, assegura Costa Jr.
Além das sentenças e das certidões negativas, Fernando e Costa Jr. fizeram uma petição ao procurador Pietro Saviotti pedindo informações sobre a situação da família Ortiz. De próprio punho, Saviotti fez o seguinte despacho: “Visto quanto consta no registro geral desta Procuradoria, confirmo que: Os senhores Ortiz acima identificados não foram objeto de investigação dos processos supracitados.” Questionado por Costa Jr. sobre o que responderia se a Procuradoria brasileira o consultasse sobre a carta rogatória enviada por ele em 1998, disse: “Responderei que não tenho mais interesse.”
De próprio punho – A Kroll Associates, uma das mais conceituadas empresas particulares de investigação e consultoria de risco do
mundo, fez nos últimos dias uma pesquisa sobre Ortiz e seus dois
filhos na Itália e em outros países da Europa. A resposta, em inglês, foi feita em dois tópicos curtos. “Não foi revelado nada que possa indicar que esses indivíduos se envolveram em atividades controversas na Itália” e “não há nada que sugira que eles tivessem, em algum momento, atraído a atenção das autoridades italianas por conexões com atividades criminais de qualquer tipo ou possam ter se associado a qualquer organização criminosa na Itália”. No Brasil, os Ortiz foram investigados pela Polícia Federal no inquérito número 12-0005, aberto em 12 de fevereiro de 1999 e encerrado no dia 6 de agosto de 2002. Nada foi encontrado sobre lavagem de dinheiro ou evasão de divisas. As pesquisas acharam apenas uma dívida fiscal de R$ 1,789 milhão, contraída entre 1995 e 1999, que está sendo paga parceladamente pelo Programa de Recuperação Fiscal do governo.
O procurador responde
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Cuidado com as fotos |
O italiano Angiolo Pellegrini adora carros antigos, se rende com facilidade a uma conversa, mas costuma fugir de fotos. “Por favor, esqueça”, pediu, com voz baixa, mas firme, ao ver a câmera no prédio romano da UCSI, a divisão de segurança institucional dos carabinieri italianos, comandada por ele. “Tomo conta de gente muito importante, italiana ou estrangeira. Não é bom para o meu trabalho”, explicou. Nos anos 90, o então coronel liderou a Operazione Malocchio (mau-olhado), que revelou como uma associação formada por integrantes da N’drangheta, calabresa, e Camorra, da Campania, arrecadou US$ 40 milhões com o tráfico de drogas e distribuiu o dinheiro por vários países, entre eles o Brasil. Há certo sentido na cautela. Numa das fotos dessa reportagem, feita em 1984 no Rio de Janeiro, ele aparece entre os juízes italianos Paolo Borselino e Giovanni Falconi, que combateram e foram mortos pela máfia. Pellegrini cuidou da segurança dos dois. “Dos que aparecem na foto, apenas eu e outro policial estamos vivos. Os outros foram assassinados”, revela. Na sexta-feira 5, livre dos flashes, ele, hoje general, detalhou a operação.
ISTOÉ – Como atuava a associação?
Angiolo Pellegrini – O dinheiro da venda de droga colombiana era esquentado em contas suíças e, depois, alimentava uma diversificada e bem estruturada rede de negócios.
ISTOÉ – Quais os países envolvidos?
Pellegrini – A partir da França, eles trabalhavam com especulação imobiliária na Ilha de Cavallo, na Córsega. Da Síria e de Santo Domingo, importavam frutas exóticas. No Panamá e na Itália, além
das frutas, negociavam metais. Na Áustria e na Holanda, eram operações comerciais. Bancos da Flórida (EUA) e paraísos fiscais
em ilhas do Canal da Mancha, na Grã-Bretanha, serviam para girar parte dos recursos, dificultando o rastreamento. A Espanha era
usada como base para mafiosos do grupo procurados pela Justiça italiana e para negócios de catering, o fornecimento de refeições
para grandes grupos.
ISTOÉ – E o Brasil?
Pellegrini – Eles movimentaram US$ 40 milhões. Desse total, US$ 10 milhões foram investidos em 35 mil máquinas de jogos eletrônicos no Brasil pelo grupo de Lillo Rosario Lauricella.
ISTOÉ – Os parceiros brasileiros conheciam a origem do dinheiro?
Pellegrini –
As investigações não deram base para afirmar isso.