FOTOS: DIVULGAÇÃOÉ fácil entender a tragédia que a surdez significou para Ludwig von Beethoven – ele era músico e foi se deprimindo e enlouquecendo conforme ia-lhe fugindo a audição. Não menos trágico é um artista plástico ficar surdo, embora não seja tão óbvia a influência que esse fato poderá ter em sua obra e levá-lo a determinados temas, cores e concepção de espaços. No livro Goya (504 págs., R$ 85), portentosa biografia do pintor espanhol Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828) escrita pelo australiano Robert Hughes, a surdez é o fio condutor da história. Hughes é um dos principais críticos de arte da atualidade, leitura obrigatória quando escrevia na revista Time. Ele não é tão mecanicista a ponto de estabelecer uma relação direta de causa e efeito entre a doença e a produção artística de Goya. Mas deixa claro que foi a surdez que fez dele o grande pintor dos horrores.

Goya ficou surdo aos 46 anos e assim viveu até os 82. Já na produção do início de carreira, o impacto da doença se faz sentir em suas telas que tinham como assunto os interiores de prisões e asilo de loucos, repletos de uma população de desvalidos. “É quase certo que essa visão do enclausuramento, onde paredes espessas impedem que o som externo penetre e as únicas vozes são os murmúrios dos prisioneiros, tenha servido a Goya como metáfora para a sua surdez”, escreve Hughes. Consagrado pintor da corte espanhola (embora tenha se exilado na França no final da vida, perseguido pelo rei Fernando VII), Goya não economizava vermelhos, azuis e dourados nos retratos da nobreza e nas cenas galantes. Também retratou a voluptuosidade em telas como Maja desnuda, a primeira a mostrar pêlos pubianos. Mas é justamente a tonalidade plúmbea daqueles primeiros trabalhos que vai direcionar sua paleta no futuro.

O ápice do que há de tenebroso são as chamadas “pinturas negras” da velhice, quando (ironia das ironias) Goya vai viver na Granja do Surdo, uma casa rural nos arredores de Madri que ganhou esse nome por ter pertencido a um agricultor – também surdo. É claro que o progressivo isolamento do artista, que perdeu a mulher aos 66 anos, o encaminhou para os temas assustadores da série de gravuras Caprichos e disparates. Mas o contexto histórico marcado pela Inquisição e pela intransigência da Espanha em alinhar-se às idéias iluministas, somado ao horror da invasão napoleônica, foi determinante na arte de Goya, visto pelo biógrafo Hughes como um homem ilustrado – apesar da origem pouco nobre. A sua gravura mais conhecida, na qual um intelectual deita melancolicamente a cabeça sobre o próprio braço enquanto esvoaçam corujas e morcegos, tem como intertítulo um dos maiores aforismos da modernidade: “O sonho da razão produz monstros.” Esse pensamento cristalinamente iluminista atravessa todo o trabalho de Goya e poderia estar na base de sua obra mais famosa entre as 700 telas, 900 desenhos e 300 gravuras que ele produziu: o óleo El tres de mayo de 1808 en Madrid, do acervo do Museu do Prado, violenta e comovente cena de fuzilamento de um homem do povo pela guarda imperial francesa. Essa tela é considerada por Hughes como o “arquétipo soberano e único de imagens de sofrimento e brutalidade na guerra” e está na origem de Execução do imperador Maximiliano no México (1876), de Édouard Manet, e de Guernica (1937), de Pablo Picasso. Isso legitima a teoria de que Goya foi o primeiro modernista da história da pintura.

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TIROS Em El tres de mayo, Goya (pág. ao lado) pintou a violência