25/09/2002 - 10:00
Se a sociedade não se mobilizar e cada um não fizer a sua parte, será difícil impedir que o mundo passe por uma séria crise ambiental. É o que defende o geógrafo mineiro Roberto Messias Franco, diretor-presidente da Biodiversitas, ONG brasileira dedicada à preservação ambiental. A organização não-governamental mantém uma reserva ecológica em Minas Gerais, onde vive o macaco muriqui (mono-carvoeiro), o maior primata das Américas, e se esforça para adiar o desaparecimento da arara-azul-de-lear, na Bahia.
Em tudo o que faz, Messias carrega a noção de conservação ambiental. O verso de seu cartão de visita, por exemplo, vem com um sistema para medir o grau de radiação ultravioleta a que a pessoa está exposta. Depois de 20 seguntos à luz, o cartão recomenda o fator de proteção adequado para evitar danos à pele. Toda a renda da venda do chamado “cartão solar” é revertida aos programas que visam proteger espécies brasileiras ameaçadas.
Ex-diretor para a América Latina do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, Messias ocupou a Secretaria Nacional do Meio Ambiente entre 1985 e 1988, durante o governo José Sarney, quando ainda não havia sequer uma pasta ministerial dedicada ao assunto. Atuou na área não-governamental, como diretor da União Internacional para a Conservação da Natureza, entidade que reúne 750 ONGs de 70 países. Além da presidência da Biodiversitas, ele dá expediente nos conselhos do Fundo Mundial para a Natureza (WWF-Brasil) e no Instituto Terra, coordenado pelo fotógrafo Sebastião Salgado, com quem desenvolve um programa de reflorestamento da Mata Atlântica, onde busca aliar natureza e rentabilidade econômica, o tema da Cúpula Mundial das Nações Unidas, a Rio +10. A seguir, trechos de sua entrevista.
Frustração. Na Eco-92, os documentos aprovados, como a Agenda 21, a convenção de mudanças climáticas e da biodiversidade, provocaram um astral de esperança. Pensava-se que começaríamos a transição para o desenvolvimento sustentável. O século XXI parecia distante, mas já havia definições do que cada país e cada sociedade faria para que o mundo fosse melhor. Parecia ser uma porta da felicidade. Tinha um parágrafo que dizia que os países ricos destinariam 0,7% de seu PIB (Produto Interno Bruto) aos projetos de desenvolvimento sustentável dos países mais pobres. Na ocasião, essa contribuição era de 0,33%. Passaram-se dez anos e hoje ela não chega a 0,27% na média global. Um país só, a Dinamarca, aumentou sua contribuição. Esse tema voltou à Rio +10. As nações ricas chegaram à conclusão, dez anos depois, de que vão fazer um esforço para chegar a 0,7%. Foi uma década perdida. Não se implementou nada do que se havia discutido.
A impressão geral é que muita coisa ficou no meio do caminho. Não se implementou nada porque não vieram os recursos para colocar as idéias em prática. Mesmo assim chegaram US$ 6 bilhões do Global Environmental Facility (GEF). Então a pergunta é se esse dinheiro foi bem usado. Montaram-se estruturas, criando-se oportunidades de trabalho para os cientistas dos países já desenvolvidos estudarem o Terceiro Mundo e voltando para fazer seus relatórios. Na vida real, onde tinha de mudar mesmo, nada mudou.
Se há corrupção, mas o objetivo é correto, então se corrija a corrupção. A desculpa de “não adianta dar o dinheiro porque eles vão roubar” é o fim da picada. É como o sujeito que encontra a mulher no sofá da sala com um amante e diz que vai vender o sofá para resolver o problema. Os US$ 6 bilhões são muito aquém do que os 0,7% do PIB dos países ricos. Estamos pior do que em 1992. Não há prazos nem compromissos dos países ricos para disponibilizar imediatamente esses recursos.
As metas definidas foram frouxas e pouco amarradas a fatos, orçamentos e compromissos concretos. Ao discutir pobreza e meio ambiente separadamente corre-se o risco de polarizar o debate de coisas que na verdade são interligadas. Vivemos num modelo econômico perverso, que provoca grandes desequilíbrios entre norte e sul, países ricos e pobres, populações ricas e excluídas. A natureza sofre com isso. Desafio qualquer pessoa a mostrar uma sociedade econômica e socialmente equilibrada, e onde a natureza esteja em processo de destruição. Não há.
Desenvolvimento que não é sustentado não é desenvolvimento, é crescimento. E o crescimento pode ser perverso, injusto, desequilibrado. Desenvolvimento sustentável é o famoso tripé conceitual: ecologicamente prudente, economicamente viável e socialmente justo. Para ser desenvolvimento real, com progresso humano e social, tem que ter essas três pernas caminhando com equilíbrio. Se não se contabilizar o prejuízo de um empreendimento sobre a natureza e não se dividir o crescimento com a sociedade, não há desenvolvimento, e sim crescimento. No Brasil, nossa chance de desenvolvimento é usar recursos naturais, o sol, a natureza, a terra, a mão-de-obra. Se isso tudo não caminha conjuntamente, se criam atrofias nas outras pernas.
A globalização é a grande causadora dessa situação em que vive o planeta, com desertificação e exclusão crescente. Precisamos rever o modelo globalizado chamado neo liberal, que não é novo nem liberal porque é protecionista. Por que não se liberam as fronteiras econômicas nos países ricos para a produção agrícola dos países tropicais? Os subsídios aos produtores nacionais podem ser legítimos. São um direito que precisa existir para a soberania de um país. Só não se exija de um país que não tenha subsídios, enquanto outros continuam dando cinicamente incentivos a seus produtores.
Para encontrarmos uma saída real é preciso puxar grandes corporações para assumir responsabilidades sociais e ambientais. Numa primeira fase, a empresa deixa de ser poluente, cumpre a legislação. Mas ela precisa transformar seu conhecimento em desenvolvimento de sua externalidade, de tudo o que está a sua volta. É preciso dividir com a sociedade uma parte dos benefícios. A poluição não é nada mais, nada menos que a socialização do dano ambiental. Se a empresa jogou o esgoto no rio, ela socializou o custo e ficou com o benefício. A empresa socialmente responsável compartilha o benefício e assume sua parte da responsabilidade social. Quem degrada mais que pague uma conta maior. Divida-se o bônus e também o ônus. Isso vale para as nações e também para as empresas.
Se é preciso uma ação governamental para que a empresa assuma sua responsabilidade de dividir uma parte do lucro com a sociedade onde está inserida, é sinal de que a empresa age por temor, e não por amor. A maior parte das companhias age só como resposta a medidas coercitivas. Apesar de haver uma consciência ambiental maior, a Terra teima em continuar se destruindo.
Olhe para o rio Tietê, em São Paulo, para os derramamentos de óleo na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, para a população e a miséria que existem em volta das grandes cidades e diga se essa visão é mesmo catastrofista. O pessimista é o otimista bem informado, hoje em dia. Chamar de catastrofista quem vê a destruição é não querer enxergar.
Há alguns mecanismos de ação para que eles cumpram sua parte. Primeiro, um repúdio internacional como o que houve com o representante americano em Johannesburgo. Não deve ter sido agradável para o Colin Powell tomar uma vaia daquelas. Existem grupos não-governamentais que questionam o modelo de economia que pode até levar a uma revisão da posição americana.
Acho difícil. Ao comprar, o consumidor vota. Ele repudia ou aceita determinada política. Quando se aceita pagar mais por produtos orgânicos, é sinal de uma mudança de atitude. A preocupação é: será que dá tempo de mudar essa cultura de consumo antes de chegarmos a uma hecatombe? Das 27 capitais de Estado, 17 têm tratamento de esgoto igual a zero. Na América Latina, os esgotos tratados não chegam a 3%, e a grande maioria do lixo é jogada in natura nos córregos d’água. Quando se vai à beira do rio São Francisco, em Januária e não se encontra mais surubim para comer, você pode não ser pessimista? As soluções ficam mais caras e difíceis, embora tecnologicamente uma grande parte possa ser resolvida. Cada vez mais a degradação produz sofrimento. A política pública de saneamento vai ser sempre um problema. Tanto é que a água deixa de ser fonte de vida para se tornar fonte de doenças, de morte. Quando se fala em um bilhão de pessoas sem água e entre 2,4 e três bilhões sem esgoto, isso é um problema de pobreza que traz embutido um custo. É preciso haver uma equação mundial de solidariedade para pagar essa conta.
Com a tecnologia disponível hoje, podem-se produzir alimentos para a população do mundo todo. É inadmissível haver fome no planeta. O modelo atual, especialmente dos americanos, é desperdiçador e, portanto, poluidor. É possível reduzir o consumo de energia e de materiais sem diminuir o bem-estar da população. Se é que no apagão do ano passado houve algo de positivo, esse algo foi mostrar o quanto somos desperdiçadores. Existem políticas públicas e posturas pessoais que podem levar a um outro tipo de vida mais econômico e ambientalmente viável, sem comprometer um padrão de bem-estar.
Enquanto cada pessoa não pensar em si como um ser global, cada sacrifício terá custo injustificado. Se ela pensar que está num universo com mais bilhões de pessoas e deve abdicar de algo por solidariedade à Terra, na qual precisam caber todos os outros, a situação muda de figura. Se você tem um automóvel que faz quatro quilômetros por litro, então vai comprar um carro mais simples e econômico, que faça dez quilômetros por litro. Se pensar simplesmente no seu conforto, pode não ver sentido nessa diminuição do ritmo de consumo. Se pensar que está entre os vários bilhões que, se mudarem, poderão trazer benefícios para todos, então fica mais leve e mais fácil mudar o comportamento. É uma questão de educação. Ter pessoas conscientizadas e não ter uma política pública que dê amparo também produz resultados pífios. A partir dessas atitudes individuais, o cidadão que começa a tomar consciência de sua situação passa a ser mais exigente e a cobrar responsabilidades, seja da autoridade pública, seja das empresas.
O cidadão pode boicotar produtos “sujos”, governos “sujos” e trazer a partir dessa discussão um germe de mudança. Temos uma reserva particular de patrimônio natural, onde preservamos o muriqui. Em volta tinha uma série de agricultores de café, que plantavam de maneira a desperdiçar agroquímicos e agrotóxicos. Como eles não tinham informação de como produzir de forma mais limpa, viam uma mata privada como a nossa com desconfiança. Algumas pessoas se perguntavam o que ganhariam com isso. Pensamos em tornar essas pessoas nossas aliadas, para que elas não ateassem fogo na reserva. Passamos a discutir formas de produzir e conviver com a natureza. Hoje temos 50 agricultores em processo de se tornarem produtores de café orgânico, o que multiplicou por mais de dois o preço do café. Os produtores ficaram felizes porque tiveram acesso a uma tecnologia nova e ainda por cima estão ganhando mais. Existem várias iniciativas como essa, feitas por ONGs na Amazônia e no Brasil central, com exemplos de produção ambientalmente menos agressiva. A idéia é encontrar alternativas concretas, que ainda são marginais e pequenas em relação aos circuitos tradicionais, o que é uma pena.
Trabalho no Instituto Terra, cujo presidente é o Sebastião Salgado. Trabalhamos em Aimorés, na margem do rio Doce, dirigindo um centro de educação para a recuperação da Mata Atlântica. Ali tem uma fazenda de cerca de 600 hectares, que havia sido transformada em pastagem de baixo rendimento. Então, o instituto começou um processo de replantio. Chegamos à conclusão de que era preciso recuperar cada rio e cada córrego para recompor a Mata Atlântica. Ao mesmo tempo, é feito o reflorestamento para uso sustentável, recriando as condições de vida da fauna, que pode ser utilizada economicamente para o enriquecimento da região, e acabando de uma vez com a devastação. As pessoas reclamam que os ambientalistas são muito genéricos, não falam nos detalhes. Minha grande preocupação hoje é mostrar que podemos ser práticos também. Podemos ter soluções ecologicamente corretas e economicamente viáveis. Acho errado expulsar as pessoas para fazer um parque. Criar corredores ecológicos é o sistema mais bacana que existe. Não adianta ter uma ilha preservada aqui e outra ali, mas, sim, fazer uma ligação entre elas, para que um animal se mova por ali. Para que a solidariedade que a floresta tem não se perca.