O governo Lula deve ficar bem atento aos recados depositados nas urnas este ano. E não foram poucos. Se o PT se consolidou como protagonista e conquistou capitais importantes, o PSDB se firmou como adversário de peso e o PMDB e o PFL se mantiveram como as forças de maior capilaridade nos rincões do País. Para não ficar novamente refém de aliados à direita nas eleições de 2006, o PT deve reconhecer as lideranças regionais emergentes, atualmente excluídas do comando nacional. O conselho ? semelhante à reivindicação do prefeito reeleito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel ? é do cientista político Fabiano Santos, diretor executivo do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), da Universidade Cândido Mendes. Aos 40 anos, o herdeiro do renomado cientista político Wanderley Guilherme dos Santos está às vésperas de lançar seu quarto livro, Representação e governabilidade na América do Sul (Fundação Konrad Adenauer/Editora da Unesp), junto com dois cientistas políticos da UFMG, Fátima Anastasia e Carlos Ranulfo de Melo. Para Fabiano, as eleições deste ano são muito mais do que um mero aperitivo do pleito nacional de 2006.

ISTOÉ – Essa eleição é o aperitivo de 2006?
Fabiano Santos

É muito mais porque está alcançando várias dimensões. Está sendo uma eleição muito rica, com impactos e consequências diversas. Teve uma dimensão nacional, mas também ratificou a noção de que o eleitor sabe distinguir as esferas da disputa. O impacto para 2006 tem mais a ver com as disputas internas dos partidos. Quem mostrou cacife, bom desempenho administrativo e capacidade de articulação será fundamental para 2006. Mas temos de esperar o segundo turno em São Paulo. Se vencer, Marta Suplicy se credenciará como a grande atriz da eleição para governador. Se não for a candidata, ela terá uma voz fundamental. Se o José Serra ganhar, passará a ser um grande personagem, não necessariamente para 2006, mas certamente como o nome principal da oposição para 2010.

ISTOÉ – Uma vitória de Serra infla a candidatura de Geraldo Alckmin para presidente?
Fabiano Santos

Alckmin é uma incógnita. Até que ponto ele teria fôlego para ampliar seu horizonte além de São Paulo? Se ele tivesse passado por algum teste fundamental na política nacional, como ministro, senador ou como participante de lutas democráticas importantes, como o impeachment de Collor ou a redemocratização, seria muito mais forte. Ele sempre foi um nome só de São Paulo, saiu do interior paulista para o governo na cola do Mário Covas, mas em uma eleição nacional é muito difícil expandir um nome que nunca teve movimentação nacional.

ISTOÉ – O sr. concorda que essas eleições consolidaram PSDB e PT como os protagonistas de 2006?
Fabiano Santos

São os principais partidos nas capitais e os mais credenciados para disputas de governos e Presidência, mas PMDB e PFL continuam tendo mais capilaridade nacional. O candidato de oposição a Lula certamente será do PSDB, mas não faz sentido o PSDB disputar sem uma parceria forte com um partido conservador, provavelmente o PFL. Em segundo lugar, não está claro que o PSDB disputará a Presidência para vencer. Isso depende do desempenho de Lula. Se ele se fragiliza, é razoável supor que os tucanos pensem em uma candidatura forte, o próprio Serra ou FHC, que só entrariam para ganhar. Se Lula estiver forte, será um bom teste para Alckmin, que não teria grandes compromissos de vencer, mas poderia crescer e se tornar um nome nacional, conhecido da política do interior. Seria um ótimo balão de ensaio.

ISTOÉ – E os outros pólos do PSDB, como Aécio Neves e Tasso Jereissati?
Fabiano Santos

Deve haver uma disputa entre Aécio e Serra. O Serra já foi candidato nacional e, se vence agora e faz uma boa prefeitura, fica muito difícil concorrer com ele no partido. Por outro lado, se ele perde, o Aécio passa a ser o grande nome. O Aécio não sai derrotado em Belo Horizonte porque não se jogou de corpo e alma. O João Leite foi um candidato do PSB, não tão vinculado a Aécio. Já o Tasso foi derrotado em Fortaleza, perdeu comando. Se um político não vence em seu Estado, fica difícil dar as cartas fora.

ISTOÉ – O prefeito reeleito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel, começou a pregar a descentralização do comando petista, concentrado em São Paulo. Essa discussão vai acontecer?
Fabiano Santos

Ela já está presente no PT há algum tempo e acho que é uma das origens das desfuncionalidades no PT e no governo. Em alguns momentos deste ano ficou perceptível a dificuldade do partido e do governo em tomar decisões, fazer a coisa andar, fazer nomeações importantes. Isso se deve à dificuldade do comando do PT em delegar funções. Há uma preocupação forte do presidente Lula e do ministro José Dirceu em controlar todo o processo. Uma variável importante para saber se o PT consegue formar quadros fora de São Paulo será o futuro dos ministérios da Educação e do Desenvolvimento Social. Tarso Genro e Patrus Ananias são duas lideranças importantes de fora de São Paulo, mas tiveram muita dificuldade em montar agências, conselhos, emplacar seus nomes. Enfrentaram a disposição do núcleo paulista em controlar todo o processo, justamente pela preocupação com o risco de emergência de lideranças alternativas. Quando Fernando Pimentel fala isso, entra na disputa do partido. Ele quer dizer que lideranças de fora de São Paulo devem ser reconhecidas como alternativas para prestar bons serviços ao partido, caso as lideranças de São Paulo não façam um bom vôo.

ISTOÉ – Uma derrota de Marta Suplicy intensificaria esse processo?
Fabiano Santos

Sim. As eleições em São Paulo para o PT têm duas dimensões. Em primeiro lugar, é a própria Marta tentando ser a principal voz para o governo do Estado. E há também a dimensão nacional. Se ela perde, os olhos da opinião pública se voltam para outros quadros do PT, nos ministérios ou em capitais importantes, como Belo Horizonte e Recife. A necessidade de “despaulistizar” o PT tem ainda uma outra dimensão, que é a necessidade de o PT entrar nas pequenas cidades, não ficar tão dependente do grande centro urbano. O desafio fundamental é ganhar capilaridade e chegar ao interior. Se ele chegar ao interior sozinho, terá mais liberdade e margem de manobra para governar nacionalmente sem precisar tanto de parcerias com os conservadores.

ISTOÉ – Mas o PT cresceu no interior.
Fabiano Santos

Não tanto quanto se imaginava. Eles devem emplacar pouco mais de 400 prefeituras e a idéia, no início do ano, era chegar a 800. Do ponto de vista de José Dirceu, que é o estrategista, isso seria importante para que em 2006 não fosse necessário fazer tantas alianças incômodas, ou, se elas fossem feitas, teriam muito mais poder de barganha. Este plano está adiado. O PMDB e o PFL continuam sendo os partidos de maior capilaridade nacional.

ISTOÉ – Essas eleições devem motivar uma recomposição ministerial?
Fabiano Santos

Os presidentes no Brasil pós-democratização sempre fizeram três mudanças importantes no Ministério. Depois de montar a primeira equipe, você tem um período de ajuste e acomodação, testes de fidelidade ao governo, e aparece a necessidade de recomposição já no segundo ano. Há uma segunda reforma que surge da eleição municipal no meio do mandato. As urnas mudam o mapa eleitoral e o governo sempre olha para isso. A terceira reforma será em função das eleições nacionais, no último ano. Para fazer a mudança agora é preciso esperar o segundo turno, até porque, se o PT perder em São Paulo, precisará acomodar alguns quadros em Brasília, como a própria Marta.

ISTOÉ – Até que ponto uma eventual vitória de Serra atinge o governo Lula?
Fabiano Santos

Atinge, mas está longe de ser algo determinante e definidor em 2006. É um sinal de que a oposição está viva e tem alternativas, está presente na vida democrática brasileira. Serra eleito não garante uma candidatura forte contra o governo se Lula estiver forte em 2006. Além disso, independentemente do resultado, Marta teve um desempenho muito bom e o PT foi muito bem em diversas capitais, ampliou o número de prefeituras.

ISTOÉ – E até que ponto uma eventual vitória de Marta fortalece o governo?
Fabiano Santos

Fortalece muito porque consolida o PT como principal partido, mas o efeito principal será sobre a disputa pelo governo de São Paulo.

ISTOÉ – Essas eleições aceleraram o processo de decadência ou substituição das oligarquias regionais?
Fabiano Santos

Sempre há um processo natural de renovação de elites. Nas oligarquias, essa renovação é muito mais lenta por envolver famílias que controlam os recursos políticos e econômicos da região. O lugar mais interessante a observar nessa questão agora é a Bahia. Lula precisa de maioria no Senado e o Antônio Carlos Magalhães acenou para a possibilidade de ser parceiro, caso ganhe a disputa dentro do PFL. Para isso, precisa vencer as eleições na sua base. São essas coisas que uma federação política produz. Se o César Borges não chegasse ao segundo turno, seria uma imensa derrota para ACM. Agora o PT nacional certamente vai tentar convencer o PT da Bahia a ficar neutro ou até ajudar César Borges. Só não é mais difícil porque o candidato João Henrique, do PDT, fez um discurso oposicionista mais agressivo do que o do PFL e é evangélico, tem um compromisso estranho aos do PT. Nas voltas que a política brasileira dá, é curioso ver o PT, que sempre simbolizou a substituição da política oligárquica por práticas democráticas, lutar pelas forças oligárquicas em Salvador.

ISTOÉ – Pelo seu raciocínio, seria ruim para o PT levar Nelson Pellegrino ao segundo turno em Salvador. O partido tampouco se engajou na campanha de Luizianne Lins em Fortaleza por preferir a vitória de Inácio Arruda (PCdoB). Não é estranho um partido torcer pela própria derrota?
Fabiano Santos

Tudo isso é típico de um sistema federativo complexo, no qual os interesses da seção nacional se chocam com os regionais. Isso acontece sistematicamente com o PT. É um xadrez difícil e complicado. Na Bahia, é importante fortalecer um ator que vai ajudar o governo Lula no Senado. Em Fortaleza, é diferente. Inácio Arruda é um personagem histórico da esquerda, tradicional aliado do PT. Mas Luizianne não é uma Heloísa Helena, não ameaça abrir dissidência. Cabe à direção do PT ter humildade para entender que deve apoiar essa decisão bonita e democrática do eleitor de Fortaleza.

ISTOÉ – Na cidade do Rio de Janeiro, segundo eleitorado do País, os três primeiros colocados fazem oposição a Lula, que sempre teve no Rio suas maiores votações. O que aconteceu?
Fabiano Santos

Estado do Rio passa por uma transformação. Lula sempre teve bom desempenho por causa da presença histórica forte do PDT, uma tradição
de esquerda e de oposição ao governo central. Lula sempre representou essa oposição e por isso sempre foi fácil para Leonel Brizola e Anthony Garotinho transferir votos para ele. O candidato do PT, Jorge Bittar, foi punido agora por várias razões, entre elas o alinhamento automático com o governo Lula, cuja política econômica sofre uma oposição muito forte da esquerda carioca. Bittar foi o relator do Orçamento e se apresentou como aliado de primeira hora de Lula. O PT do Rio tem uma herança forte do pensamento estatizante, do funcionalismo, e o Rio sempre teve uma tradição de esquerda nacional-desenvolvimentista, contrária, portanto, à atual política econômica.

ISTOÉ – Mas para onde foram os votos nacional-desenvolvimentistas? Para o Partido da Frente Liberal?
Fabiano Santos

Foram pulverizados com a candidatura de Jandira Feghali (PC do B) e com o voto útil em Cesar Maia contra o senador Marcelo Crivella (PL), evangélico. Está aí o fator da transformação política fluminense. A gente observa uma simpatia entre PT e PFL na capital e alianças de fato em cidades como Niterói e Nova Iguaçu. É como se esses dois partidos, que têm cara nítida, estivessem se estruturando e se juntando para, antes de se enfrentarem um ao outro, vencer um inimigo comum, que é Garotinho com a máquina estadual e os evangélicos. O PT e o PFL não correm nessa faixa, não sabem falar essa língua e precisam de um jogo mais estruturado, com temas mais claros, atores sociais claros, linhas ideológicas mais nítidas. A votação do PT em Niterói e Nova Iguaçu e a derrota de Garotinho em cidades importantes mostram que uma etapa dessa estratégia foi cumprida.

ISTOÉ – A quarta eleição consecutiva vencida por Cesar Maia o credencia como peça para as eleições presidenciais ou sua imagem está limitada regionalmente, como a de Alckmin?
Fabiano Santos

Cesar Maia tem um alcance maior do que o de Alckmin por não enfrentar tanta disputa no seu partido. Ele se consolidou como um dos grandes administradores brasileiros, mas não está clara sua capacidade de agregar fora do Estado. Se o PFL tiver um nome nacional, é o dele, que deve ser trabalhado. Existe um eleitorado conservador importante, um espaço a ser ocupado, mas ele precisa superar a imagem de excelente administrador e passar a ser visto também como estadista, que costura alianças e consegue mantê-las sem conflitos. Ele tem um problema de confiabilidade e precisa refazer sua história para ser um nome confiável em uma articulação. Dentro do PFL não há outro nome hoje.