20/08/2008 - 10:00
A África entrou em minha vida através da literatura de Karen Blixen, a nobre dinamarquesa que viveu longos anos numa fazenda no Quênia, entre os kikuius. Lembro da descrição de um jantar oferecido ao príncipe de Gales, em sua fazenda. Contrariando os costumes da sociedade européia extrativista, a baronesa Blixen convida o chefe kikuiu para a festa e ele deixa todos boquiabertos, ao adentrar os salões com majestade inigualável, usando uma formidável capa de peles de macacos azuis. Esse velho guerreiro kikuiu vive no meu labirinto particular e, volta e meia, eu peço que ele se apresente e deslumbre todos com sua formidável capa, porque as histórias africanas são sempre excitantes e têm o poder de abrir as portas da imaginação com violência insuspeitada. Além do mais, multiplicam-se com muita rapidez. Quem já esteve no continente africano sabe do que estou falando: a África nos redimensiona e sempre que recrio a narrativa de Karen, colho algumas pérolas.
Há alguns anos, num jantar com amigos, ouvi o relato de um casal que acabava de voltar de um safári no Quênia. Entre as aventuras contadas durante uma deliciosa refeição, regada a bons vinhos, uma me chamou a atenção: estavam ambos na savana, ao nascer do dia, acompanhando o despertar daquela solidão selvagem, quando o guia chamou-lhes a atenção para um guepardo que espreitava um bando de gazelas. Fizeram silêncio e aguardaram. O guepardo falhou na primeira investida e eles já estavam quase indo embora, quando perceberam que uma gazela tinha encontrado um esconderijo perfeito, no meio de uns arbustos. Um dos integrantes do grupo, um idiota contumaz, como diria papai, tentou afugentar o animal, para chamar a atenção do felino e poder assistir à matança. Foi severamente repreendido pelo guia, que aprendera a não interferir na ciranda de amor e morte da vida selvagem. Aquela gazela aprendera a esconder-se perfeitamente, a fim de evitar o inimigo e o conhecimento adquirido seria passado para as futuras gerações na misteriosa transmissão de tudo o que não é dito.
Algo parecido ocorre conosco. Há um conhecimento que vai além da palavra, uma atitude que nos é passada como um bastão de revezamento e que determina o andamento da vida de todos nós. Que lição, por exemplo, nos passam os juízes que permitem que cidadãos processados concorram a cargos públicos, usando da famosa presunção da inocência? Não se trata aí de simplesmente aplicar a lei, mas de entendê-la, discuti-la e, em última análise, não permitir que um paradigma, criado com a intenção de proteger o cidadão, termine por prejudicá-lo. É para isso que eles estão lá, não é? Para nos mostrar de que maneira desaparecer no meio daquele arbusto.
Dessa vez, afugentaram a gazela. E os predadores, nesse caso, é via de regra, encerram rapidamente a história.