07/01/2004 - 10:00
Do alto, o horizonte parece muito amplo. Do topo do poder, então, ele é infinito. É sempre assim com os políticos que decolam: no dia seguinte à vitória nas urnas, eles começam a sentir o peso de suas promessas. O incômodo se transforma em angústia: eles vêem o tempo voando pela janela. Por isso, a duração dos mandatos dos governantes é uma polêmica histórica no Brasil e no mundo. É tema recorrente nas meditações presidenciais. Para o petista Luiz Inácio Lula da Silva, que na campanha já dizia que correria atrás de seus objetivos 24 horas por dia, durante 365 dias por ano, quatro é pouco, seis é bom. Isso ele já deixou claro publicamente. Em outubro, à agência de notícias espanhola EFE, o presidente desabafou: “Eu sei que tenho quatro anos para fazer o que me propus. Eu não tenho quatro dias.” E opinou: o ideal é um mandato de seis anos, sem direito à reeleição. O assunto voltou à tona durante entrevista à Rede Bandeirantes, no final de novembro. Contrário “filosoficamente” à reeleição, Lula deixou claro que seu partido sonha alto, mas não mensurou a duração do projeto de poder da estrela vermelha, como fizeram os tucanos, que alardearam o sonho de manter-se 20 anos no poleiro. “Vamos trabalhar para ficar o maior tempo possível. Não sou candidato (à reeleição). Também não vou dizer que não sou”, despistou Lula, repetindo que os 1.461 dias (2004 é bissexto) são pouco. O presidente sabe que seus desafios são imensos: o Brasil está faminto por investimentos, sedento por crescimento econômico e carente de empregos. São os gols que a torcida, também de olho no cronômetro, espera ansiosamente.
Se em público o presidente Lula já externou sua preocupação com o tempo, mais à vontade, com meia dúzia de políticos, ele já abre mais seu pensamento. No final de novembro, diante de uma farta paella espanhola, no restaurante Família Giuliano, na orla de Maceió (AL), depois de participar dos festejos do Dia Nacional da Consciência Negra, o presidente apimentou a conversa. Entre um marisco e outro, disse: “Temos reformas importantes para 2004. A gente deveria fazer a reforma política. O País não aguenta uma eleição a cada dois anos. Você começa um projeto e já vem uma nova eleição. Acho que uma proposta boa seriam seis anos de mandato para o Executivo, sem reeleição. Quatro anos é muito pouco”, afirmou o presidente, dando sua pitada na reforma política prometida para entrar no forno neste primeiro semestre, provavelmente ao lado da sindical e de mudanças no Judiciário. Na mesa estavam o governador de Alagoas, Ronaldo Lessa (PSB), o senador Renan Calheiros (PMDB), o presidente do PT alagoano, Paulo dos Santos, a presidente da Associação de Municípios Alagoanos, Rosane Beltrão, a secretária de Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, e o presidente da Assembléia Legislativa de Alagoas, Celso Luís (PL).
Lula não deixou claro se os seis anos valeriam para o atual mandato, modificando-se a Constituição para alterar mais uma vez a duração da permanência no poder – de quatro anos para seis anos – ou se a proposta poderia valer a partir do pleito presidencial de 2006. Esta última hipótese lhe daria, teoricamente, a possibilidade de ficar dez anos no poder: os quatro deste mandato mais seis, caso ele fosse reeleito. Uma idéia ousada, que daria margem à gritaria da oposição. Uma opção menos explosiva seria manter seus atuais quatro anos, com reeleição para outro mandato de igual duração – um total de oito anos. Isso evitaria acusações de que Lula estaria tentando se beneficiar, já que ele usufruiria os mesmos direitos de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso. No pleito presidencial seguinte, em 2010, passaria a valer a regra dos seis anos de mandato. Caso o PT esteja “bem na fita”, depois de oito anos de Lula, o presidente colocaria no páreo um nome com chances de repetir a façanha dos socialistas franceses: ao conquistarem pela primeira vez o Palácio Elisée, em 1981, eles conseguiram permanecer lá por 14 anos. Mas François Mitterrand – que se reelegeu em 1988 para mais sete anos de mandato – acabou desgastado. Em 1995, os franceses optaram pelo conservador Jacques Chirac e, em 2000, uma revisão constitucional encurtou o mandato presidencial para cinco anos, renovável indefinidamente.
O assunto deve esquentar no Congresso no primeiro semestre. O relator da reforma política, deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO), guarda um truque para imprensar o PT contra a parede. Ao apresentar seu relatório sobre o tempo de mandato presidencial e a reeleição em fevereiro, Caiado vai defender cinco anos, sem direito à recondução. A intenção é constranger os petistas, obrigando-os a defender publicamente a reeleição ou a elasticidade do mandato do presidente. “Só vamos discutir isso em 2005”, desconversa o presidente do PT, José Genoino, crítico da reeleição. Em junho de 1997, os petistas, então oposicionistas, foram contrários à reeleição de FHC, o primeiro a ser conduzido ao poder duas vezes seguidas pelo voto direto. Getúlio Vargas foi o que mais tempo permaneceu no comando: a primeira fase durou 15 anos (entre o governo provisório após a revolução de 1930 até 1945, fim da ditadura do Estado Novo). Ele voltou ao Palácio do Catete (RJ) em 1950, dessa vez pelo voto direto, mas suicidou-se quatro meses antes de completar seus quatro anos de mandato. O único presidente que governou seis anos, tempo considerado ideal por Lula, foi o general João Baptista Figueiredo, no final da safra do regime militar (1979-1985). Pelo jeito, achou tempo demais: ao sair, pediu que o esquecessem.
No Congresso, quem antes defendia a reeleição com ardor parece arrependido. “Quatro anos é pouco e reeleição é demais. Um mandato
de cinco ou seis anos é razoável”, diz o líder dos tucanos no Senado, Arthur Virgílio Neto (AM). “Pode ser até seis anos, mas sem reeleição”, ecoa o líder do PFL, José Agripino (RN). O PMDB, que anda hasteando a bandeira da recondução de Lula ao cargo e se insinuando para
indicar o vice em 2006, concorda com o fim da reeleição, mas não agora. “O modelo ideal é o mandato de seis anos, mas só para o
próximo mandato e sem reeleição”, opina o líder Eunício Oliveira (CE), defendendo a tese que poderia resultar em uma década de PT no governo. “Seis anos agora, só aceito se for a vontade do presidente”, arremata Eunício. Para quem acredita em numerologia – que estuda o significado oculto dos números – nunca é demais saber: justamente o 6 influenciará 2004, cuja soma dos algarismos, por coincidência, resulta também em 6. Segundo especialistas, o ano 6 será marcado pela necessidade de resolver problemas antigos. Será o caso da intrincada polêmica da duração dos mandatos?
Saldo comercial – Mas o calendário político do ano depende do ritmo da economia. O governo faz planos otimistas, prometendo para logo
os primeiros sinais do crescimento, que não deu o ar da graça em 2003, mas deve reaparecer agora, segundo todas as análises dos economistas. O presidente, ciente de que a memória brasileira é fugaz, repetiu exaustivamente nos últimos discursos do ano que pegou uma batata quente na mão. “Não se esqueçam nunca que o risco Brasil estava a 2.400 pontos no final de 2002 e está hoje a menos de 500 pontos. Não se esqueçam nunca de que a inflação estava prevista para 40% e vamos chegar a 2004 com uma inflação de no máximo 6%. E não se esqueçam nunca de que o nosso país não tinha um dólar sequer para financiar as exportações e terminaremos o ano com o recorde de superávit de toda a nossa história, quase chegando aos US$ 24 bilhões”, defendeu-se o presidente em dezembro. O extraordinário resultado na balança fez com que o Brasil entrasse no restrito grupo de países que têm saldos comerciais ( exportações menos importações) superiores a US$ 20 bilhões. Lula citou também como vitória a aprovação das reformas tributária e da Previdência, liderada pelos presidentes da Câmara, João Paulo Cunha (PT-SP), e do Senado, José Sarney (PMDB-AP), além do ministro da Casa Civil, José Dirceu. De fato, as medidas aprovadas no Congresso foram fundamentais para aumentar as chances de o País recuperar a saúde econômica.
Casa arrumada – A previsão do mercado para a inflação de 2003 ficou próxima da meta de 8,5% estabelecida pelo Banco Central: por volta de 9%. O Comitê de Política Monetária (Copom) reduziu a taxa de juros para 16,5% anuais em sua última reunião do ano. Como as contas estão arrumadas, ou seja, não há sinal de que o governo vá precisar tomar dinheiro às pressas no mercado, como fez nos últimos anos, a tendência é de que a taxa continue em queda. Quando Lula assumiu, a taxa de juros estava em 25% e o Banco Central se viu obrigado a aumentá-la até 26,5%, rebaixando-a pela primeira vez em junho. Assessores próximos do presidente acreditam que o País entrará em campo no segundo trimestre com uma taxa de juros de 14% anuais. Na última vez em que um cenário parecido com esse se firmou, em 2000, o Brasil cresceu 4,36%. Agora, as previsões são um pouco menos entusiasmadas. Convergem para um patamar de 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB). “Não me surpreenderia se o Brasil crescesse 4%”, diz Paulo Levy, diretor de Estudos Macroeconômicos do Instituto de Planejamento Econômico e Aplicado (Ipea). O grande ponto de interrogação é se o País decolará como uma águia, alçando um crescimento sustentado, ou se o vôo será capenga como o de uma galinha. Mas o mantra de 2004 será o desenvolvimento – que no governo tucano ficou no sonho e Lula pretende tornar realidade.
O árduo trabalho de arrumar a macroeconomia, através de um rígido arrocho fiscal e monetário, foi feito em 2003, pelo ministro da Fazenda, Antônio Palocci Filho, com todo o respaldo do presidente Lula. Toda a energia foi concentrada para evitar a quebra do Brasil e a sua perda
de credibilidade internacional. Tarefa cumprida, hoje o ministro e médico avalia que o remédio aplicado na economia pode ter sido
amargo, quase intragável – praticamente impedindo o crescimento econômico em 2003 –, mas começa a reanimar o paciente. Alguns dos sinais de melhora são o aumento do consumo, através do crédito, e o crescimento da atividade industrial. Assim, as condições para a geração de emprego estão dadas. O ministro Palocci anunciou no fim do ano que chegou o tempo do desenvolvimento e da microeconomia, referindo-se a um rol de medidas que estão em fase final de redação. Essas ações significam o ressurgimento da política industrial, dez anos depois da onda liberal iniciada por Fernando Collor, e têm todas as digitais da velha substituição de importações.
O leque de medidas será lastreado em financiamentos públicos e benefícios fiscais. “A diferença é que estimularemos os setores para expô-los ao mercado e não para protegê-los do mercado”, explicou Palocci. Os setores escolhidos, por enquanto, são quatro: semicondutores, programas de computador, medicamentos e bens de capital. Juntos, tragaram US$ 7 bilhões da balança comercial brasileira só neste ano, metade deles consumidos em importações de componentes eletrônicos. É um fenômeno comum em países subdesenvolvidos. Embora exporte aparelhos celulares e maquinário eletrônico de todo o tipo, o Brasil não tem uma só fábrica de chip. Funciona basicamente como montador de produtos eletroeletrônicos. A idéia do governo é erguer por aqui a fase inicial da cadeia. Ao fazê-lo, estará quebrando a engrenagem sobre a qual a economia se move de acordo com os soluços do dólar, vindos do Exterior. Uma missão liderada por Edmundo Machado de Oliveira, assessor especial da Fazenda, fez um giro pela Europa na primeira semana de dezembro, anunciando a nova política industrial brasileira. Como mascate, Oliveira visitou na França a ST Mycroeletronics, quarta maior produtora mundial de semicondutores, e o Imec, instituto de pesquisa mantido pelas grandes companhias mundiais de alta tecnologia em Leuven (Bélgica). “O Brasil não está no mapa dessas empresas. Queremos colocá-lo”, explicou Oliveira.
No céu de brigadeiro em que Palocci pretende decolar, porém, há nuvens carregadas. Elas foram descritas durante conversa, no fim do ano, entre os economistas José Roberto Afonso, ligado ao PSDB, e Teresa Ter Minassian, executiva do FMI. “O que a nova oposição acha do novo governo?”, perguntou Teresa. “Eles estão aumentando a carga de impostos além do razoável”, disparou Afonso. Como as empresas de serviços, sobretudo as pequenas e médias, são as grandes empregadoras da economia, a fúria tributária vai corroer ainda mais o nível de emprego e a renda do trabalho. É o que está por trás da alta taxa de desemprego. No entanto, houve no fim do ano o primeiro sinal de melhora: de 12,9% da População Economicamente Ativa, em outubro, a taxa caiu para 12,2% em novembro. “De que adianta o risco-país cair e o banco conseguir dinheiro barato no Exterior se a padaria da esquina não consegue crédito nem vende o suficiente para crescer?, alfineta José Roberto Afonso. Palocci, por sua vez, afirma, baseado em estudo da Receita Federal, que a carga tributária está caindo. “O montante de impostos em relação ao PIB será um ponto porcentual menor neste ano”, diz. Persistente e diplomático, o ministro vem recebendo grupos de empresários todas as sextas-feiras para pedir-lhes que confiem no governo, que invistam e conduzam a valsa econômica neste ano.
Pedra e vidraça – Quanto mais rápido nascerem os frutos da plantação que o governo fez na economia em 2003, melhor para a colheita
eleitoral do PT nas eleições para as 5.560 prefeituras do País. “Nas eleições deste ano, o PT quer manter sua posição, com oito capitais e 194 prefeituras, além de ampliar o seu espaço nos grandes centros urbanos”, adianta Genoino. O principal campo de batalha será São Paulo. Marta Suplicy melhora seu desempenho, mas a última pesquisa do Instituto Datafolha, divulgada em dezembro, demonstrou que a disputa pelo voto paulistano vai ferver: a prefeita, com 18%, está empatada tecnicamente com Paulo Maluf (PP) e José Serra (PSDB), ambos com 20% das intenções de voto. O PT confia na sua estrela em redutos hoje pefelistas, como Curitiba (PR) e Salvador (BA). Mas os petistas terão que suar muito no Rio para derrotar o prefeito Cesar Maia (PFL). Em Porto Alegre, tradicional reduto vermelho, com quatro mandatos petistas, o candidato Raul Pont, ex-prefeito, vai enfrentar um adversário que ganha força: o ex-senador José Fogaça (PPS).
A oposição sabe da força pessoal do presidente Lula, retratada nas pesquisas de opinião. “Vamos centrar fogo no governo, não em Lula”, adianta o secretário-geral do PFL, Saulo Queiroz. Os tucanos também afiam o bico para a briga. “Queremos conquistar 30 milhões de órfãos do PT, dos funcionários públicos aos pequenos empresários”, provoca Artur Virgílio. O PT se prepara para o contra-ataque: colocou no forno cartilhas para seus candidatos. Em abril, o partido organizará até uma conferência nacional para orientar seu time a defender o governo federal na campanha municipal. Uma partida que irá testar a capacidade de aprendizado dos jogadores, todos novatos nas novas posições assumidas: os tucanos e pefelistas no papel de pedras, e os petistas, como vidraça. O placar estará condicionado, em grande parte, aos resultados da economia, que o torcedor espera sejam os melhores possíveis.