As águas de março não foram suficientes para aplacar a fúria do incêndio que atinge o coração do Planalto. As labaredas de intrigas, fofocas, boatos, conspirações são atiçadas ainda mais pelo ressentimento, raiva, revanche, sede de vingança, de competição. O fogo derreteu o núcleo do poder, que de duro hoje não tem mais nada. Os quatro petistas que o integravam saíram feridos da primeira grande batalha interna do governo Lula travada por dois grupos que disputam a hegemonia para ditar o rumo da política econômica.

Na verdade, a história se repete. É assim no governo Lula. Foi assim no governo Fernando Henrique Cardoso. Uma facção adota a palavra de ordem “crescimento econômico já” – são os chamados desenvolvimentistas. O outro grupo reza pela cartilha da ortodoxia econômica, em busca do equilíbrio fiscal – são os monetaristas. Na era FHC, os desenvolvimentistas eram representados, entre outros, pelo então governador de São Paulo Mário Covas (morto em 1998); pelo ministro da Saúde, José Serra; e por Luís Carlos Mendonça de Barros, presidente do BNDES. Este acabou tombando após denúncias sobre a privatização das teles. Na era Lula, seus passos foram seguidos pelo ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, que não caiu, mas foi atingido por denúncias envolvendo seu assessor Waldomiro Diniz, flagrado pedindo propina para o bicheiro Carlinhos Cachoeira.

Os monetaristas da bélle èpoque tucana eram liderados pelo então ministro da Fazenda, Pedro Malan, e pelo presidente do Banco Central, Armínio Fraga. No governo Lula, eles foram substituídos por Antônio Palocci e Henrique Meirelles. Ao jornalista Jorge Moreno, de O Globo, FHC prevê tempos difíceis para Dirceu: “Não consegui salvar nenhum dos meus ministros que estiveram na alça de mira.” Se a história se repetir, Palocci sairá vencedor. Mas nunca é demais lembrar: FHC foi derrotado por Lula justamente porque o eleitorado optou pela mudança. Curiosamente foi essa a palavra que acendeu a fogueira no Planalto. A polêmica nota aprovada por unanimidade pelo diretório nacional do PT, na sexta-feira 5, pedia “mudanças na política econômica” para gerar desenvolvimento econômico e social.

Paralisia – Na verdade, a nota foi muito mais amena do que o tom dos discursos contra a política econômica, que impede o governo Lula de cumprir a sua promessa de criar dez milhões de empregos. A estimativa de desempregados no País chegou exatamente a este patamar: dez milhões. Outro fator irrita os petistas: a paralisia do governo diante da crise Waldogate. “O núcleo ficou mole e não administrou a crise. Ninguém saiu em defesa de Dirceu. Quem teve que fazer isso foi o Genoíno, o Aloizio Mercadante (líder do governo no Senado) e a Ideli Salvati (líder do PT no Senado), que acabaram se queimando”, protestou um petista da direção nacional. O caso Waldomiro foi o estopim político de uma crise que começou a se agravar na economia, com a revelação, mês passado, de que o país destinado ao espetáculo do crescimento amargou uma inesperada queda do PIB em 2003 (de 0,2%). O deputado estadual Marcelo Cândido (SP), veterano sindicalista, mandou um recado a Lula: “Companheiros, vou para a rua e explico até o caso Waldomiro. Mas não dá para ir para a porta da fábrica com desemprego.” A pressão social e econômica vem angustiando o PT há tempos.

No dia seguinte à reunião, o presidente nacional do PT, José Genoino, recebeu telefonemas de Lula e de Palocci, que pediam explicações. Pressionado pelo Planalto, Genoino tentou recuar afirmando que o PT não pedia mudanças, como se a palavra, lema da campanha de Lula, fosse um palavrão. Mas de outro lado, havia a pressão da base petista. Esmagado, Genoino acabou descendo do muro. Depois de conversar com Palocci pessoalmente, na terça-feira 9, o presidente do PT vestiu finalmente o uniforme de dirigente partidário: “O PT não é apêndice do Planalto. É a coluna vertebral do governo, mas os nervos estão muito sensíveis”, afirmou. Explicou que o PT não propõe o confronto: “Só queremos mais desenvolvimento, mais prioridade para o emprego e mais crescimento.”

O PT decidiu manter equidistância do governo, fisicamente. A próxima reunião do diretório nacional, em abril, será em São Paulo, e até mesmo a reunião do Grupo de Trabalho Eleitoral que discutirá as eleições municipais, em maio, poderá ser transferida de Brasília para São Paulo. O PT e o Planalto selaram um pacto de convivência pacífica. Genoino explicou que não tem como represar os descontentamentos, legítimos, cada vez mais gritantes do PT. O partido decidiu também se preparar: vai convidar economistas para debater os rumos da política econômica, inclusive dissidentes da ortodoxia em vigor, como Luciano Coutinho e Ricardo Carneiro. “O governo percebeu que todos erraram nesta crise”, disse um dirigente petista.

Governo

Vazamento – Desde o início do governo, o presidente tinha um quarteto, unido e coeso, que resumia, antecipava e disseminava suas idéias pela administração. Era o núcleo duro, composto por velhos companheiros do PT: Dirceu, Palocci, o chefe da Secretaria de Comunicação de Governo, Luiz Gushiken, e Luís Dulci, ministro da Secretaria Geral da Presidência. Mas o grupo só durou um ano. A infalibilidade do núcleo começou a ser perfurada no ano passado, quando o então ministro da Previdência Ricardo Berzoini, afilhado de Gushiken, enquadrou os velhinhos e não reconheceu o erro na tevê. Dirceu ligou o trator e exigiu que Berzoini voltasse ao estúdio e pedisse desculpas em rede nacional.

Outro golpe na unidade do grupo aconteceu nas horas dramáticas do caso Waldomiro. Dirceu foi ao presidente e, olho no olho, pediu demissão, mas Lula não aceitou. Horas depois, o episódio circulava por Brasília. Qualquer jogador de bingo sabia que a origem do vazamento era o gabinete de Gushiken, o que ajudou a envenenar o clima da companheirada. Neste primeiro round da primeira guerra interna do governo Lula, Palocci saiu vencedor. Do outro lado do ringue, José Dirceu ainda sangra com o escândalo Waldomiro. Ele é a principal voz discordante da equipe econômica. Palocci conta com o apoio de Gushiken: ambos são cobras criadas da extinta Libelu (grupo trostkista Liberdade e Luta). Gushiken foi outro que saiu queimado. Lula ficou irritado por achar que a Secom não se esforçou para administrar a crise “Waldogate”. O mineiro Dulci se protegeu das labaredas, seguindo o conselho do compositor paulista Adoniran Barbosa: “Bom de briga é aquele que cai fora.”

Há ainda dois novatos, que mal tiveram tempo de atuar no núcleo, já que Lula decidiu aposentá-lo: Aldo Rebelo (PCdoB), da Articulação Política, que passou discreto pela crise, e o presidente do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, Jacques Wagner. Este último resolveu tomar partido na terça-feira 9, ao lembrar a Palocci que ele não poderia exigir silêncio dos petistas. “Se o Palocci acha que opera melhor sem que ninguém fale, isso é um desejo dele, mas a vida não é só desejo, não se vive de sonhos”, cutucou. O golpe atingiu o ministro da Fazenda no fígado, que respondeu ao ataque, ausentando-se acintosamente da cerimônia que lançou a nova política industrial, cujo anfitrião era o próprio Wagner. Palocci, com o apoio de Lula, teme que o inesperado ataque de sua própria base política envie sinais equivocados para os agentes econômicos. Lula tinha tomado cuidados especiais para transformar o encontro num marco da reconciliação: cravou Dirceu ao lado de Gushiken. Só faltou combinar com Palocci, que estragou a foto com a sua estrondosa ausência. Lula ficou uma fera, o que explica o ar levemente hostil que manteve durante seu discurso. Após a reunião, de volta ao seu gabinete, desabafou: “Não aguento mais essas brigas!” O escritor americano Mark Twain (1835-1910) poderia ser uma boa dica de leitura para o presidente nesses dias quentes. Dizia Twain: “A Bíblia nos ensina a amar o próximo e também a amar nossos inimigos, provavelmente porque em geral são as mesmas pessoas.”

 

Sempre na mesma tecla

Reprise: em 1998, tucanos pediam o que PT quer hoje

hora de reduzir as taxas de juros, voltar a fomentar o desenvolvimento e gerar empregos. E que seja agora, já, antes que os brasileiros sejam soterrados pela especulação financeira.” Não, não é um trecho da polêmica nota do PT, divulgada no dia 5 deste mês, torpedeada como se fosse o fósforo que atearia fogo ao País. A pregação faz parte de uma nota oficial do PSDB de São Paulo há seis anos, quando FHC finalizava o primeiro mandato e ingressava na campanha de reeleição, com juras de crescimento econômico.

Nem por isso os tucanos foram chamados de incendiários. A política econômica prosseguiu, como Pedro Malan e FH defendiam. Naquela época, a taxa de juros real estava em 29% (descontada a inflação
de 4% projetada para o ano) e era a mais alta do mundo. As
atuais divergências entre PT e governo Lula são mais um capítulo
da histórica guerra entre desenvolvimentistas e monetaristas.
As cobranças das bases tucanas obrigaram o Planalto a justificar a sua política, mas com habilidade para não criar maremotos, cuidado que o governo Lula não teve na primeira grande trombada com o seu partido. FHC deu o recado: concordava com a redução dos juros, mas teria que ser no momento certo, devido à conjuntura internacional. E ponto. Não houve tiroteios. Secretário-geral do PSDB naquela época, Sebastião Farias explicara: “Não estamos fazendo o papel da oposição. Queremos um debate de alto nível.” Então chefe da Casa Civil do governo Covas, Walter Feldman fazia coro: “O PSDB pau lista tem independência. E o PT, tem?”

Florência Costa

PT de olho em Garotinho

PT está acompanhando de perto e com alguma apreensão a movimentação de Anthony Garotinho, ex-governador do Rio de Janeiro. O jogo político para a sucessão de Lula já está no tabuleiro e o PT sabe que Garotinho num partido grande pode dificultar os planos da reeleição de Lula em 2006. Por isso, todas as articulações do atual secretário de Segurança estão sendo monitoradas. O último lance aconteceu no domingo 7, numa agitada convenção na Barra da Tijuca com a presença do presidente nacional da legenda, Michel Temer (SP), quando o ex-governador, eleito presidente estadual do PMDB, foi lançado candidato à sucessão de Lula.

Desde já a candidatura própria está causando polêmica. Dentro do partido, há quem defenda que a melhor opção seria dar apoio irrestrito à reeleição de Lula. Afinal, o PMDB fechou acordo para compor a base aliada do governo – ganhando em troca cargos no Ministério – além de se comprometer a dar sustentação política ao Palácio do Planalto. Faltando pouco mais de três anos para as eleições presidenciais, a guerra de nervos nos bastidores já começou.

“Precisamos romper com esse dilema fisiológico que atormenta o PMDB. Queremos ser protagonistas ou coadjuvantes na política?”, questiona o deputado Moreira Franco (RJ), responsável pelo lançamento informal da candidatura Garotinho. “Fizemos uma aliança de natureza parlamentar, não política”, acrescenta Moreira.

“Não sou candidato a nada”, desconversa Garotinho, numa tentativa de não acirrar ainda mais a briga interna. É público que o PMDB do Rio tem sérias divergências em relação ao governo federal. As críticas nem um pouco veladas de Garotinho a Lula e sua equipe estão transformando-o num político temido. “Foi o próprio presidente quem admitiu que o governo está sofrendo de incapacidade gerencial. Minhas críticas são pontuais. E não tenho problema de elogiar, só que os erros têm sido maiores que os acertos”, alfineta Garotinho.

Para a maioria dos líderes petistas, o secretário de Segurança do
Rio não é considerado aliado, mas sim inimigo. O senador Tião Viana (PT-AC), por exemplo, chegou a dizer que Garotinho não teria ido
para o PMDB a fim de construir uma aliança com o PT, mas sim para incitar as divergências: “Ele quer o confronto e deixa claro que enfrenta nosso projeto.” Outros petistas estão preocupados com o perigo que o ex-governador representa para o projeto de reeleição de Lula. “O governo precisa ficar atento à ascensão do grupo de Garotinho”, admite Tião Viana.

Liana Melo.