01/09/2004 - 10:00
Em linguagem recriada nos anos de chumbo, desaparecido político é aquele que sumiu para sempre. No total estimado de 400 mortes provocadas pelo regime militar (1964-1985), o Brasil tem pelo menos 150 desaparecidos políticos. Essa realidade angustiava tanto a família do estudante Ruy Carlos Berbert que, 20 anos após seu desaparecimento, em maio de 1992, ele ganhou um enterro simbólico. Em lugar do corpo, a urna funerária continha objetos do estudante. A cerimônia, com velório na Câmara Municipal e presença do bispo da região, parou a cidade paulista de Jales. “Foi um bálsamo para todos”, lembra
sua mãe, Ottília. Só três anos depois, em 1995, o Estado reconheceu a morte
de Ruy e de outros desaparecidos políticos, emitindo um atestado de óbito presumido. A maioria das famílias, no entanto, não se conforma com essa indefinição. Agora que a Lei da Anistia completa 25 anos, essas famílias querem, pelo menos, saber o que aconteceu.
Promulgada em 28 de agosto de
1979, pelo presidente João Baptista Figueiredo, na sequência de uma
intensa campanha popular, a Anistia
é um dos principais marcos da redemocratização do Brasil. Como
efeito imediato, espalhou uma espécie de euforia cívica pelo saguão dos aeroportos. Amparados pela lei, centenas de brasileiros voltaram do exílio. Nessa época, a
professora Laura Petit cultivava a
esperança de reencontrar seus
irmãos, Lúcio e Jaime, que, junto
com a caçula da família, Maria Lúcia,
tinham trocado São Paulo pela
guerrilha do Araguaia, organizada pelo PCdoB, no sul do Pará. Emboscada
em 1972, Maria Lúcia havia tombado a tiros, segundo relato de uma guerrilheira que escapara do cerco do Exército.
Lúcio e Jaime, porém, jamais voltaram. O silêncio sobre o paradeiro desses
rapazes e dos outros desaparecidos é um dos elos rompidos no processo de conciliação que a Lei da Anistia deveria promover. O outro, é a identificação e
punição dos torturadores. Durante muito tempo prevaleceu a tese de que a
anistia tivesse mão-dupla. Valeria tanto para os que se rebelaram contra o regime, quanto para aqueles que torturaram e mataram. Essa interpretação é contestada por juristas de renome, como Fábio Konder Comparato. “Sob o aspecto constitucional, nunca houve nenhuma conexidade que permitisse estender a anistia aos torturadores e assassinos”, afirma. “Mesmo se houvesse, teria de ser desconsiderada após a Constituição de 1988.” Além disso, Konder Comparato ressalta que o Brasil ratificou em 1992 a Convenção Americana de Direitos Humanos, que tornou imprescritível o crime da tortura.
Três anos depois, a mesma lei que assumiu a responsabilidade do Estado na morte dos desaparecidos, estabeleceu indenização às famílias em torno de R$ 100 mil, equivalente à época a US$ 100 mil. Representante das Forças Armadas no debate sobre o projeto, o general Alberto Cardoso afirmou que aquela era uma página virada. A professora Laura, que perdeu os três irmãos, jamais concordou com ele. “Aquela é uma página em branco da história do Brasil”, contrapõe. Essa também é a opinião de Suzana Lisbôa, que representa as famílias na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, criada em 1995 para analisar cada caso de desaparecimento. Há também pessoas com morte anunciada oficialmente sem que o corpo aparecesse, como aconteceu com o estudante de medicina Hiroaki Torigoi, morto em janeiro de 1972.
Houve quem transformasse a busca de seu desaparecido no motivo da própria existência. Hoje com 87 anos, Felícia Mardini Oliveira só interrompeu sua peregrinação por não ter mais onde procurar a filha, Ísis, presa no Rio de Janeiro, em janeiro de 1972. Atrás dela, acabou participando dos principais acontecimentos políticos do País. Há 25 anos, estava no Congresso quando a Lei da Anistia foi aprovada, pela estreita margem de 216 a 201 votos. “Tenho outros dois filhos, mas sinto a falta de Ísis todos os dias”, confidencia. Seu consolo é ter conseguido batizar com o nome da filha a pequena praça em frente à casa onde viveram, em São Paulo. “É uma prova de que ela viveu e teve ideais.”
Os percalços das famílias poderiam
inspirar odisséias. Apesar disso, só foram localizados sinais de três desaparecidos. Restos mortais de Maria Lúcia Petit estavam enrolados em um pára-quedas, no cemitério de Xambioá (TO), em 1991. No mesmo ano, em uma vala do Cemitério de Perus, em São Paulo, foram encontrados os restos de Dênis Casemiro, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), enterrado com dados falsos. Também em Perus, na época da promulgação da anistia, Suzana Lisbôa havia encontrado os despojos do marido, Luiz Eurico Tejera Lisbôa, da Ação Libertadora Nacional (ALN), sepultado com nome fictício. “Passaram-se 25 anos e não consegui descobrir mais nada”, lastima. “Vou ter de entrar com ação contra o Estado para saber o que aconteceu”, diz.
A família de Virgílio Gomes da Silva, também da ALN, acaba de decidir-se pela medida judicial. Além das circunstâncias, quer identificar quem torturou Virgílio até a morte, em setembro de 1969, em São Paulo. Para o secretário especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, depois do que passaram, as famílias têm direito de reivindicar o que bem entenderem. “Mas no Brasil não há clima para um processo similar ao da Argentina”, comenta Nilmário, referindo-se ao fato de que no país vizinho, que contou suas vítimas aos milhares, há torturadores atrás das grades.
No Brasil, a falta de vontade política faz até sugerir versão de que a ditadura não deixou arquivos. Para o escritor Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido em janeiro de 1971, a documentação existe. “Esses papéis estão por aí”, diz. Aos 11 anos, Marcelo estava se preparando para ir à praia com os pais e as três irmãs quando a Polícia do Exército invadiu sua casa, no Rio. Rubens Paiva saiu com os militares, disposto a esclarecer acusação de que mantinha correspondência com exilados no Chile. Foi a última vez que a família esteve completa. Até hoje Marcelo clama por justiça. Sua família ganhou em todas as instâncias o processo que move contra a União, mas não consegue receber a indenização. Por outro lado, superou o processo de tentar descobrir os despojos. “Não queremos receber um punhado de ossos”, diz. “Meu pai foi muito maior do que isso. Alguns dizem que está enterrado em praia da Barra. Outros, na Floresta da Tijuca. São lugares bonitos.” Marcelo, sua mãe e irmãs não desistem, porém, de esclarecer o que ocorreu com Rubens Paiva. Para eles, a anistia é uma obra inacabada.