10/11/2004 - 10:00
Nem Franz Kafka, autor do clássico O processo, no qual descreve os caminhos tortuosos a que a Justiça pode chegar para atormentar a vida de uma pessoa, faria melhor. Durante cinco anos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), a segunda mais alta corte do País, se debruçou sobre um processo no mínimo inusitado: a morte de dois papagaios, causada por dois cães (um pastor alemão e outro rottweiler). Como um caso desses chegou ao STJ é explicado pelo fato de o réu – o dono dos cães – ser subprocurador-geral da Justiça do Trabalho, tendo assim direito a foro especial. Mas a tramitação ter-se arrastado esses anos não foi consequência do foro especial ou de recursos a sentenças judiciais proferidas em instâncias inferiores. O caso foi direto para a última instância. O problema está mesmo na estrutura legal brasileira, em que recursos, apelações e procedimentos protelatórios são uma constante. O crime dos papagaios ocorreu em abril de 1988, quando os cães do subprocurador da Justiça do Trabalho Luiz da Silva Flores pularam a cerca que separava o quintal de sua casa no Lago Norte, em Brasília, do quintal do vizinho, Antônio Fernando Manzan, dono das aves. Era madrugada e os cachorros mataram os papagaios a dentadas. Manzan, no entanto, só comunicou o caso à polícia um ano e cinco meses depois “do crime”, quando foi à delegacia reclamar do vizinho. Ele contou que os cachorros tinham novamente pulado a cerca de 1,80 m e “passeado” em seu terreno, “colocando em risco a vida das pessoas da casa”. E aí lembrou que os cachorros tinham matado seus papagaios. Na delegacia, não houve acordo entre os vizinhos e o caso foi encaminhado ao Juizado Especial de Pequenas Causas. O litígio entre as partes sobre o fim trágico das aves prosseguiu e o processo chegou ao Tribunal de Justiça do DF. Como o réu era subprocurador, com direito a foro especial, a morte dos papagaios alçou vôo para o STJ. O Ministério Público procurou demonstrar que, mesmo havendo uma das partes com direito a foro privilegiado, o caso era uma contravenção penal e deveria ser devolvido à primeira instância.
No dia 26 de novembro de 1999, pouco mais de dois meses depois da reclamação na delegacia, o processo pousou de vez no STJ. O relator escolhido foi o ministro Milton Luiz Pereira (hoje aposentado). O caso passou por dezenas de trâmites jurídicos, como pedidos de vista, mandados de notificação, despachos e recursos, até que chegou a julgamento em Corte Especial, no dia 6 de setembro de 2000. Foi decidido que caberia ao STJ ficar com o caso, mesmo se tratando de uma contravenção. O julgamento prosseguiu no dia 4 de outubro, foi suspenso e retomado em fevereiro de 2001. A decisão, dessa vez, foi receber a denúncia. Em 12 de junho de 2001, o crime dos papagaios voltou para a Corte Especial, sempre com o mesmo relator. Após muita discussão, o STJ decidiu suspender o processo por dois anos. O objetivo dos ministros era que os vizinhos chegassem a um acordo nesse período. Mas o imbróglio continuou. Terminada a suspensão, o processo ressuscitou, já transformado em ação penal. E caiu nas mãos do ministro Hamilton Carvalhido no dia 3 de dezembro de 2003. Carvalhido não precisou de muito tempo para acabar com a novela. No dia 2 de fevereiro deste ano, em uma decisão de menos de 20 linhas, resume o que seus pares ocuparam em dezenas de páginas e anos de discussão: concluiu que o “crime” prescreveu e determinou o arquivamento do processo.
Juizado de paz – Para destacar ainda mais o clima kafkiano de todo o caso que ocupou durante cinco anos os ministros do STJ, quando a tramitação do processo começou, em 2000, o rottweiler já tinha morrido. O pastor alemão seguiu o destino de seu companheiro tempos depois. O procurador, que em sua defesa havia alegado que as cercas de sua propriedade tinham sido consideravelmente elevadas para impedir novas fugas dos animais, desistiu de criar cães. Em momento algum do processo existe menção a pedido de indenização pela morte dos papagaios. Ao que tudo indica, o crime dos papagaios não passou de briga de vizinhos. Para o presidente do STJ, Edson Vidigal, casos como esse são matéria-prima dos juizados de paz. A criação desses juizados – com titulares eleitos pelo voto direto – está tramitando no Congresso e poderá desafogar os tribunais de casos em que o bom senso é o melhor julgamento.