17/11/2004 - 10:00
O senador John Kerry perdeu a corrida para o rival George W. Bush. Nas páginas eletrônicas da maior enciclopédia da internet, a Wikipédia, porém, ele foi o assunto mais procurado no mês das eleições americanas. Kerry superou Bush e outros temas picantes, como a lista de posições sexuais, que inclui os malabarismos do indiano Kama Sutra. Política, história, ciência, atualidades, ou simples curiosidades, são o prato cheio da Wikipédia, um compêndio online com 350 mil verbetes escritos em 80 idiomas, entre eles mais de 25 mil em português.
Fundada pelos americanos Jimmy Wales e Larry Sanger, a Wikipédia (www.wikipedia.org) é toda escrita por ilustres desconhecidos. Seu nome vem de wiki wiki, que significa “muito rápido” em idioma havaiano. Na internet, esse termo designa as páginas que podem ser editadas e modificadas ao bel prazer dos navegantes. A enciclopédia é gerenciada e operada pela Wikimedia Foundation, organização sem fins lucrativos que deu início à enciclopédia livre em 2001, que ultrapassou um milhão de artigos publicados. A obra seguiu uma experiência dos mesmos Wales e Sanger, a Nupedia, uma enciclopédia virtual que fechou no final de 2003 e cujos textos eram submetidos à análise criteriosa de reputados acadêmicos e especialistas, para só então ser publicados.
Na Wikipédia, ao contrário, os artigos são escritos de forma colaborativa. Vários autores editam a mesma página. E ainda há trabalho de sobra para os voluntários, que têm o poder de corrigir artigos, traduzir textos e endireitar a ortografia (um trabalho insano, tendo em vista a quantidade de erros). O banco de dados da Wikipédia tem ainda dicionário e livro virtual de citações, sem contar os fóruns de discussão, de rascunho e as novidades que surgem diariamente.
A estrutura de poder da Wikipédia é uma mistura de anarquismo, despotismo e democracia. Como suas páginas podem ser editadas por qualquer um, supõe-se que haja sempre boas intenções por trás do que é escrito. A punição para os erros é a reação típica da internet: uma avalanche de críticas. No fundo, ela é mais um exemplo do poder multiplicador da informática, cujo principal modelo é o sistema operacional Linux, o concorrente do Windows e resultado do trabalho de milhares de programadores que compartilham seu esforço com a comunidade virtual. É uma nova forma de produção de riquezas, baseada no conhecimento. São milhares de voluntários cujo empenho pode rivalizar com as mais ricas empresas do mundo. Ali há de tudo um pouco, desde a letra completa dos hinos Nacional, da República e da Independência do Brasil até registros sonoros dos sotaques fluminense e nordestino.
O avanço dos compêndios online daria arrepios nos franceses Jean Baptiste d’Alembert e Denis Diderot, os editores da Encyclopédie, empreendimento literário e filosófico que mais influência exerceu sobre a vida política, social e intelectual da Europa do século XVIII. Concluída em 1772, a obra sintetizou todo o saber científico e filosófico da ocasião e serviu de modelo às obras que vieram depois. Seus 28 volumes e mais de 70 mil artigos foram produzidos pelos notáveis do Iluminismo francês, o que inclui nomes como Voltaire, Rousseau e Montesquieu. A Encyclopédie foi a primeira enciclopédia moderna e desafiou os dogmas da Igreja Católica ao explorar três grandes ramos do pensamento: a memória, a razão e a imaginação.
Sem a presença de notáveis, a Wikipédia aceita quem quiser pertencer a seus quadros. Evoca uma variação da famosa frase do humorista americano Groucho Marx, que desdenhava o clube que o aceitasse como sócio. Um dos planos da Wikipédia é uma edição em papel, prevista para 2005. Se o projeto vingar, o guia virtual perderia um de seus maiores trunfos, a capacidade de corrigir seus erros de forma instantânea.
