Eles já foram aplaudidos de pé pelo ministro Gilberto Gil e pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Também ganharam elogios do prefeito de Paris, Bertrand Delanoë. Em três ocasiões, apresentaram-se para figurões da política internacional no Teatro Municipal paulistano: na abertura do Fórum Mundial de Cultura, em uma cerimônia da Unctad (a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e a Indústria) e, mais recentemente, na abertura do primeiro congresso da ong Cidades e Governos Locais Unidos, presidido pela prefeita de São Paulo, Marta Suplicy. Em nenhuma o nervosismo foi obstáculo para os 50 integrantes do projeto Dança Comunidade, integrado por jovens da periferia de São Paulo vinculados a ongs como Gol de Letra e Arrastão. Após um ano de ensaios sob a batuta do coreógrafo Ivaldo Bertazzo, cada movimento flui com naturalidade. Uma temporada no Sesc Belenzinho, na capital, e incursões pelo interior paulista contribuíram para fixar os passos do espetáculo Samwaad – Rua do Encontro e levaram os dançarinos às páginas dos principais veículos de comunicação do País. Em maio, foram capa de ISTOÉ.

Hoje, satisfação e alegria brotam dos olhos de quem, um ano atrás, se sentia tão distante do presidente da República quanto suas casas estão afastadas do eixo cultural e econômico da metrópole. “Nossa meta foi contribuir para expandir seu repertório artístico e de linguagem e favorecer a ‘desmassificação’ desses jovens”, conta Ivaldo. Para ele, o adolescente é a principal vítima da era de consumo. Pobre de experiências, busca referenciais para compor sua identidade e nem sempre os encontra, mesmo os filhos de famílias abastadas. Seu método, ao unir samba e música indiana, permite que os jovens penetrem em um outro universo. Nas aulas, Ivaldo introduz expressões musicais do Havaí e da Bulgária e, com a habilidade de um malabarista, ensina que o silêncio deve ser respeitado e que cada gesto pode ser suave. “O adolescente é agressivo por natureza. Nos anos 70, achávamos que para liberar essa agressividade era preciso gritar e jogar tinta na parede. Aqui, ela é canalizada de forma criativa. Os jovens ganham em elegância e evoluem na comunicação”, elogia o diretor.

Uma das jovens, a dançarina Camila Brandão Azanha, tem 18 anos e mora com a mãe na Vila Albertina, zona norte da capital. Ela descobriu sua paixão pelo palco ainda criança e, três anos atrás, ingressou no curso de dança contemporânea oferecido pela ong Gol de Letra, a 500 metros de sua casa. Lá, convive com outros cinco dançarinos que também atuam no espetáculo Samwaad. “Camila chegou aqui com a coluna ligeiramente arqueada e as mãos frágeis, reflexos de sua insegurança, e teve uma sensível evolução na postura”, lembra Ivaldo. No outro lado da cidade, é o jovem Rubens Oliveira Martins, 19 anos, que se esmera em transmitir os ensinamentos de Ivaldo aos alunos da ong Arrastão, localizada no Campo Limpo, zona sul paulistana. Rubens dá aulas de percussão às crianças do grupo Arrasta-lata, menina dos olhos da entidade. Ele mora com a mãe e três irmãos em um sobrado no Jardim Saint Moritz, bairro de ocupação recente no município de Taboão da Serra, na Grande São Paulo. “Apesar do enorme potencial e da capacidade de liderança, Rubens não conseguia expor suas idéias. Trabalhamos para que ele vencesse a timidez e aprendesse a falar mais alto”, diz Ivaldo.

A trajetória desses meninos ilustra a capacidade de transformação social e crescimento pessoal desencadeada pelo projeto. Durante um ano de aulas de origami (arte japonesa de fazer dobraduras de papel), música, terapia corporal e fisioterapia aliadas a ensaios cinco dias por semana, assistentes sociais e psicólogos foram os catalisadores de um processo suado e contínuo de superação das distâncias. No palco, surgem evidências de que, oferecidas condições e estímulos, todo jovem é capaz de romper o casulo, os limites entre a periferia e a ribalta. “No começo, muitos deles tremiam de vergonha. Hoje, são confiantes. Ficaram mais organizados e atentos”, nota a assistente social Cléo Regina Miranda, que os acompanhou desde os primeiros ensaios. “Em muitos casos, saíram de ambientes onde a carência financeira é tão evidente quanto a carência de afeto e respeito e descobriram como é ser admirado. Ter orgulho do próprio trabalho é importante para que eles se sintam capazes de conquistar o que aspiram, seja um emprego, seja melhor qualidade de vida. A maioria nunca tinha se hospedado em um hotel. Hoje, eles percebem que suas casas não são tão confortáveis quanto os hotéis, mas sabem que é possível lutar para isso”, diz.

Ainda no primeiro semestre, alguns dos músicos que tocam ao vivo no espetáculo foram interceptados por uma blitz na saída do teatro. Pobres e negros, em sua maioria, aprenderam no dia-a-dia a lidar com os desmandos de uma polícia mal preparada e de um sistema que reproduz os mesmos abusos do século XIX.  Mas, vitoriosos, sabem que nada disso é capaz de abalar sua dignidade. Os 50 jovens do Dança Comunidade já podem olhar a polícia de frente. No final do ano, o projeto termina e metade dos dançarinos será chamada para assessorar Ivaldo nas oficinas que ministra por todo o País. Os demais estarão aptos a transmitir seus conhecimentos a outros jovens de seus bairros e dar continuidade ao trabalho. O show deve continuar.