17/11/2004 - 10:00
Brasília revelou uma novidade ao País na semana passada: o governo Lula desistiu do PMDB e o PMDB desistiu do governo Lula. Nesta separação, cada vez mais litigiosa, nenhum lado precisou alterar seu temperamento. O PT no poder federal continua basicamente auto-suficiente e o PMDB permanece como sempre, dividido – um pedaço colado ao governo e uma fatia atraída pela oposição. Outra novidade, que pode ser boa para o País, é que o Planalto pela primeira vez dá sinais de que desistiu da reeleição das mesas do Congresso, sonho acalentado pelos atuais presidentes – o senador José Sarney (PMDB) e o deputado João Paulo Cunha (PT) – e um pesadelo que divide os partidos e trava a pauta no Senado e na Câmara dos Deputados, que não votam nada desde agosto.
“Sempre achei um equívoco esta reeleição”, reconheceu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em conversa com ministros na viagem a São Paulo para a posse de Paulo Skaf na presidência da Fiesp, segunda-feira. O outro interessado, Sarney, deu uma demonstração de isolamento na reunião da cúpula do PMDB, na quarta-feira 10, em Brasília, quando foi a única voz a se levantar contra a proposta de sair do governo: ao terminar de falar, cara amarrada, Sarney não recebeu um único aplauso e correu o sério risco de ser vaiado. Em vez do constrangedor silêncio que aclamou Sarney, o orador seguinte, o governador gaúcho Germano Rigotto, foi ovacionado com gritos e aplausos ao propor: “O PMDB precisa deixar de ser um partido de cúpula e voltar às bases, ter uma identidade própria e se afastar dos cargos no governo Lula.”
Renan e os governistas, como os ministros Amir Lando (Previdência) e Eunício Guimarães (Comunicações), nem pediram a palavra, conforme o combinado na noite anterior. Quem fugiu do roteiro foi o presidente do PMDB, deputado Michel Temer, que seguiu a onda do plenário e aprovou duas propostas que surpreenderam a ala a favor do Palácio. Michel acatou a proposta de uma convenção nacional, em vez de meras consultas, para aprovar a saída do PMDB do governo. E, no lugar de um encontro lá por março de 2005, topou antecipar, para 12 de dezembro, um prazo de exíguos 30 dias que encurta o espaço de manobra do governismo.
Setores do Palácio do Planalto chegaram a agir para represar a sangria: saindo do plenário hostil, Sarney foi alcançado por um telefonema do próprio Lula. O presidente se comprometeu a atrair pessoalmente os governadores Rigotto (Rio Grande do Sul), Luís Henrique (Santa Catarina) e Roberto Requião (Paraná). Lula só não prometeu nada quanto aos governadores de Pernambuco (Jarbas Vasconcelos) e Rio de Janeiro (Rosinha Matheus). “São dois casos perdidos”, admitiu o presidente. O bombeiro Aldo Rebelo, ministro da Articulação Política, perdeu o sono até a madrugada de quinta-feira 11, reunido com os líderes do PMDB no Senado e na Câmara, Renan Calheiros e José Borba, para armar o contra-ataque. No final do dia, um manifesto com a assinatura de 48 dos 76 deputados da bancada estava pronto para defender a permanência no governo e, de quebra, pedir a destituição do infiel Michel Temer da presidência. O candidato da ala que apóia o governo é o senador Maguito Vilela (GO). Nas contas do Planalto, a facção governista do PMDB controla 16 dos 27 diretórios regionais. Seis (São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Mato Grosso do Sul e Acre) são francamente favoráveis a um alinhamento com a oposição, hoje ocupada por PSDB e PFL. Os outros cinco (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Sergipe e Distrito Federal) propõem independência, saindo do governo e entregando os cargos, mas sem integrar uma oposição orgânica. “Em política só existe quente ou frio. Independente é morno”, desdenha Renan Calheiros.
Mas o governador Jarbas Vasconcelos, o mais quente da oposição, não tem dúvidas: “O que o PMDB tem que decidir é se atrela ou desatrela o partido do PT.” Defensor do desembarque já, antes mesmo da convenção, o pernambucano ficou um tanto desanimado com a demora: “Um ano atrás eu achava que o Lula ia mudar tudo. Aí, o Zé Dirceu começou a catar gente no partido para eleger o Sarney presidente. Isso é mudança?” O prefeito de Aracaju, Marcelo Deda, ex-líder do PT na Câmara, acha que o clima piora com a obsessão da Mesa: “Reeleição é o tema que desarticula tudo.” Desarticulou o jantar de paz que João Paulo Cunha organizou na segunda-feira 8, em sua casa, para demover os líderes de todos os partidos de continuar obstruindo a pauta da Câmara, atulhada por 21 MPs. Quando pediu sugestões, foi atropelado por 15 minutos de um silêncio enervante. “É preciso definir uma agenda. E, nela, não pode estar a reeleição”, avisou o líder do PMDB, José Borba (PR), sob concordância geral. O jantar foi tão indigesto que João Paulo cancelou o almoço do dia seguinte com o próprio Lula. Com o que não concorda o todo-poderoso ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu: “Se depender de mim, não tenho dúvidas, João Paulo será o próximo presidente da Câmara.”
O problema todo é que, até agora, a voz mais poderosa do governo chama-se José Dirceu. E o ministro da Casa Civil não quer saber de acordo formal com o PMDB. “Nessa questão, é só o governo não fazer nada que eles não saberão o que fazer”, disparou Dirceu em declaração à imprensa na quarta-feira 10. Na avaliação do ministro, o PMDB é um partido fadado a rachar. Se o governo não ceder às suas chantagens, uma parte ficará com o Palácio e outra vai mesmo para a oposição. Em outras palavras: desfaz-se um casamento que nunca ocorreu de fato e aproveita-se de quem quiser posar de amante.