06/08/2010 - 21:00
ISOLADO
Piquet conta que se dava muito bem com Massa, mas depois
que foi banido da F-1 o piloto da Ferrari deixou de falar com ele
Depois de passar quase um ano no ostracismo, Nelson Ângelo Piquet, 25 anos, está de volta às pistas. Embora tenha participado de alguns torneios de kart e de stock car nos últimos meses, seu retorno oficial ao cockpit acontece no sábado 7. Ele correrá pela Nationwide Series, divisão de entrada da Nascar, principal categoria do automobilismo americano. A ideia é acumular experiência no segundo semestre para estrear em 2011 na Nascar Truck, principal divisão do esporte.
"Hoje, é evidente que o esporte se comercializou de um jeito que
não permite mais brincadeiras que podem custar o campeonato"
Protagonista de um dos maiores escândalos da F-1 – admitiu ter batido o carro para favorecer Fernando Alonso, seu colega na Renault em 2008 –, foi criticado por Felipe Massa quando o caso veio à tona. “Foi uma atitude muito feia. Jovem, errou”, disse Massa. No ano passado, os dois se encontraram num cartódromo em São Paulo e o ferrarista reagiu com frieza aos cumprimentos de Piquet. A saia-justa e o constrangimento ficaram evidentes. Piquet tinha tudo para saborear uma doce vingança ao ver Massa duramente criticado por seguir uma ordem da equipe e deixar o mesmo Alonso passá-lo no GP da Alemanha. Mas prefere analisar o contexto da F-1 hoje. “Qualquer um na posição dele teria de fazer o mesmo”, diz.
"Me coloquei entre um ditador (Flavio Briatore) e Fernando
Alonso (foto), que tentam pintar como Dick Vigarista"
O Brasil se desiludiu com você e com o Felipe Massa. Dá para comparar a sua situação em Cingapura (quando bateu para favorecer Fernando Alonso) com a do Massa na Alemanha (que deixou o piloto espanhol passar)?
Eu era um piloto novo, estava aprendendo e entrei em um time que era do (Fernando) Alonso. Ele tinha sido bicampeão pela Renault e o Flavio Briatore, diretor da equipe, era o melhor amigo dele. Ele tinha toda a atenção. Com o Massa foi diferente. O Massa chegou antes do Alonso, ele conhece a Ferrari há mais tempo e ainda tem o Jean Todt, hoje na Federação Internacional de Automobilismo (FIA), mas que ainda tem força dentro da Ferrari. E quantos anos o Massa tem na F-1? Nove anos? A situação dele é completamente diferente da minha.
Diferente como?
Para ele, foi mais desagradável porque ele tem uma trajetória de vitórias e bons resultados, mas nessa temporada não vinha bem, apesar de ter um histórico na equipe pela qual compete. É chato ver alguém que chegou depois com a bola toda, como o Alonso, andando bem mais. E é isso que está acontecendo com o Massa.
Essa é uma prática comum?
Um pouco. Uma equipe da F-1 investe centenas de milhões de dólares, ela não quer assumir o risco de perder por um motivo besta, como o capricho de um piloto. Tudo é levado em conta pela equipe, que toma uma decisão final e os pilotos acatam. Mas ninguém gosta de receber uma ordem como a que o Massa recebeu.
A atitude de Massa o surpreendeu?
Ter deixado o Alonso passar não, mas a forma com que ele o deixou passar sim. Geralmente esse tipo de arranjo se faz de maneira mais sutil. No final de uma reta o piloto freia um pouco antes em uma curva, deixa o companheiro se aproximar e fazer a ultrapassagem. Tudo bem que em disputa pelo primeiro lugar fica mais difícil ser sutil, mas não precisava ser tão evidente. Aí o Massa me surpreendeu. Ele queria evidenciar o jogo de equipe da Ferrari para se mostrar, para causar um pouco de confusão. Porque a situação em si é normal. O código mais usado é o que a Ferrari usa, de que o companheiro está mais rápido que você. O Massa entendeu, mas queria deixar claro que, por ele, não haveria ultrapassagem. A Ferrari jamais vai perder a oportunidade de aproximar um de seus pilotos dos líderes do campeonato. Se o Massa não quer que isso aconteça, ele precisa aceitar que está mais lento e correr. Trabalhar para ficar mais rápido que o Alonso. Não tem outro jeito.
Você se dava bem com o Massa quando corria na F-1?
Me dava bem tanto com ele quanto com o Rubens Barrichello. Os dois sempre me trataram muito bem, me davam dicas nos circuitos que eu conhecia menos, sentávamos os três juntos nas reuniões de pilotos. Era um clima gostoso.
Mudou depois que o arranjo de Cingapura veio à tona?
Mudou bastante. O Massa ficou muito chateado comigo porque ele acha, até hoje, que perdeu o campeonato de 2008 por minha causa. Não adianta argumentar que ele quebrou o motor na Hungria, que ele e a Ferrari cometeram erros. Fora que também faltou sorte para ele, né? Pelo amor de Deus, aquela última volta em Interlagos foi pura sorte do (Lewis) Hamilton (que foi o campeão) e azar dele. Mas ele continua muito chateado. Eu entendo, mas não sofro mais tanto com isso. Nunca mais conversei com ele. A gente se cruza de vez em quando, mas não temos contato.
Você entrou na Renault como segundo piloto? Estava no contrato?
Para ser bem honesto, não lembro de ter nenhuma claúsula desse tipo no contrato. Mas nas reuniões que antecedem os GPs sempre fica muito claro. A equipe estabelece um código que será usado para orientar um piloto a dar passagem ao outro, além de marcar os locais, geralmente dois, onde as ultrapassagens podem ser feitas. É o acordo de cavalheiros, é a palavra do piloto – não tem nada em contrato. Embora não conheça o contrato do Alonso e do Massa, acho muito difícil que haja uma cláusula como essa, até porque quando o campeonato começou o Massa estava em pé de igualdade com o Alonso. O máximo que tem por escrito é que os pilotos devem respeitar as ordens de equipe.
Como fica a competitividade com o fato de haver o primeiro e o segundo piloto da F-1?
Não acho certo um piloto dar passagem para o outro, mas também não acho um absurdo. A F-1 é um esporte de equipe. Vamos inverter a situação: se fosse o Massa que estivesse melhor no campeonato, o Alonso teria que dar passagem e não haveria discussão. A gente pode até imaginar uma equipe com um só piloto, mas economicamente fica complicado. Ela teria que trabalhar com metade do orçamento, metade do pessoal, não sei se daria certo, apesar de ser, teoricamente, viável.
Mas não fica evidente para o torcedor que existe jogo de equipe.
O torcedor ainda tem como referencial de competitividade da categoria a época do meu pai, que brigava com o Nigel Mansell dentro da mesma escuderia. A Williams estava cindida – eram dois times completamente separados dentro da equipe, com mecânicos e engenheiros que não se falavam. E o que aconteceu em 1986? Os dois perderam o campeonato para o Prost, da McLaren. A Williams tinha ganhado quase todas as corridas, mas o Prost, de pontinho em pontinho, acabou levando o título enquanto os dois brigavam. Hoje é evidente que o esporte se comercializou de um jeito que não permite mais esse tipo de brincadeira que pode custar o campeonato.
A Ferrari é clara no jogo de equipe dela?
Não só ela, todas as equipes são.
De onde vem tanto nacionalismo brasileiro em um esporte tão individual como a F-1?
O brasileiro tem uma paixão muito grande pelo País. Quando você pode exibir o Brasil em um ambiente tão diferente como o da F-1, onde prevalecem os europeus, é natural que o torcedor se identifique mais com o piloto do que com a equipe. E para o piloto isso é importante. Eu posso dizer com conhecimento de causa: a Europa é um fim de mundo. Quem sai do Brasil para morar lá não come bem como aqui, não tem o clima, a praia, a família e os amigos. Então, não poder subir ao pódio representando o Brasil por causa de um acerto de equipe é tão frustrante para o piloto quanto para o torcedor. Poder levantar a bandeira é sensacional.
Parte do problema está na forma como a F-1 é apresentada ao torcedor?
É complicado apresentar a F-1 para o torcedor brasileiro. Ele está acostumado com o futebol, que todo mundo conhece mais. A F-1 é uma categoria mais restrita, fechada, cheia de boatos e segredos. Ela envolve muito, muito dinheiro, e poucas pessoas. É difícil passar essa complexidade para o torcedor. O (narrador) Galvão Bueno, por exemplo, faz o que pode, mas ele não é piloto. Quando o Luciano Burti, que foi piloto da categoria, comenta, as coisas ficam mais claras. Lógico, o Galvão é um narrador profissional, ele precisa falar para o povão e as pessoas estão acostumadas a ouvi-lo, mas muita coisa que ele diz não faz sentido. Ele adora dizer que fulano está pensando isso ou aquilo. É claro que ele não sabe o que passa na cabeça do fulano. Mas entendo o esforço para explicar a vida em um paddock chato como o de F-1.
Como foi, para você, deixar a F-1 pela porta de trás?
Errei. Ninguém sonha em sair da F-1 como eu saí, mas aconteceu. Agora virei a página. Meu foco é a Nascar, apesar de a categoria nunca ter sido uma meta na minha carreira. Cheguei a receber propostas de equipes iniciantes para continuar na F-1 depois da confusão com a Renault, mas preferi vir para a Nascar. Tive minha experiência na categoria, tinha muitas expectativas, mas acabou. Hoje tenho claro na minha mente que quero ser o primeiro brasileiro a conquistar o título da Nascar nos Estados Unidos. Me arrependo do que fiz, mas não vivi uma decepção com a categoria. Me coloquei em situação difícil, entre um ditador (Flavio Briatore) e o Alonso, que tentam pintar como Dick Vigarista, mas é muito bom, muito rápido e muito esperto.
Que tipo de esperteza?
Todas. Ele é esperto o suficiente para ser legal com você e ganhar sua confiança para depois, na corrida, não ajudá-lo. Trabalha com a equipe, está sempre antecipando as estratégias dos outros carros e é extremamente focado no que interessa para ele. Ele sempre quer mais, pede mais, corre atrás, enche o saco e, se tiver força na equipe, consegue tudo. Eu fazia o mesmo, mas era um piloto jovem e as pessoas não davam muita bola.
Como é competir em uma categoria inferior à F-1?
Inferior é questão de ponto de vista. A Nascar movimenta US$ 11 bilhões por temporada, contra US$ 8 bilhões da F-1. Atrai um público muito maior que o da F-1. Tem disputas diferentes, mas em maior quantidade que a F-1. Mas na cultura brasileira a Nascar não existe. O Brasil não tem a cultura da Nascar. Mas vou mudar isso. Quero ser para a Nascar o que o Emerson Fittipaldi foi para a F-1.