06/08/2010 - 21:00
O diplomata Craig Murray conta no livro “Diplomacia Suja” (Companhia das Letras) sua experiência no Uzbequistão, país para onde foi enviado como embaixador da Inglaterra. Murray assumiu a função no auge da guerra ao terror promovida por George W. Bush, que tinha na Inglaterra uma fiel aliada. Denunciou abusos aos direitos humanos cometidos em nome do combate ao terrorismo e a condescendência das autoridades com esse fato. À promoção da tortura ele atribui a verba de US$ 140 milhões que os EUA enviaram ao país.
Leia trecho do primeiro capítulo do livro "Diplomacia Suja", de Craig Murray
DESPERTAR
Chris parecia surpreso.
“Está bem, vamos lá” não era a reação típica de um embaixador britânico à notícia de que o julgamento de um dissidente ia começar. O Land Rover encostou na porta da embaixada e eu saltei, ainda me sentindo desconfortável com o fato de as pessoas me chamarem de “sir”, abrirem as portas para mim e pararem de conversar quando eu passava.
Chegamos ao tribunal, cuja pequena entrada passava por uma parede de barro pouco atraente e conduzia a um pátio sujo, contendo diversos prédios brancos achaparrados. Como muitas construções soviéticas, parecia inacabado. Para entrar no pátio tivemos de mostrar os passaportes a dois policiais sentados a uma mesa diante do portão. Eles levaram séculos para anotar detalhes com um lápis mastigado num velho livro-razão. Com o tempo eu descobriria que a ocultação de uma terrível crueldade atrás de uma fachada familiar era um tema recorrente no Uzbequistão.
Cerca de cem pessoas espalhavam-se pelo pátio, à espera de que os vários julgamentos começassem. Fui apresentado a diversos indivíduos mais ou menos maltrapilhos que representavam organizações de direitos humanos. Suas roupas eram excêntricas mesmo no caleidoscópio étnico e social de Tashkent, indo da lã axadrezada e dos suéteres aparentemente feitos, e malfeitos, de fios de meias velhas às espalhafatosas bermudas de praia com óculos de grife falsificados. Estranhamente, as sete ou oito pessoas que conheci pareciam pertencer a sete ou oito organizações diferentes, e quase ninguém falava com ninguém.
Um homem baixo, mas de aparência elegante, com cabelos brancos e grandes óculos negros, tinha um ar tão importante que não falava com absolutamente ninguém. Chris, ocupado com as apresentações, indicou-o e disse. “É Mikhail Ardzinov — ele quer que você se dirija a ele.” Fiquei confuso, pois decidir quem falava com quem envolvia dar cerca de oito passos pelo pátio. Chris explicou que Ardzinov sentia-se muito importante porque seu grupo era o único registrado, e portanto o único legal. Os outros eram todos ilegais. Peculiarmente, o grupo registrado de Ardzinov chamava-se Organização de Direitos Humanos Independente do Uzbequistão.
Nada disso tinha importância para mim, naquele momento, e eu certamente não era embaixador há tempo suficiente para sentir meu orgulho ferido por dar oito passos, portanto fui em frente e apertei a mão do sujeito. Em troca do esforço, recebi um olhar longo e frio.
Mas mesmo num primeiro encontro, algumas dessas pessoas não podiam deixar de impressionar. Um senhor tinha sido professor primário até ser expulso do emprego por recusar-se a ensinar cegamente o que estava nos livros do presidente. Ele agora acompanhava o julgamento de dissidentes, em geral aqueles que mereciam menos atenção da imprensa e eram realizados nos lugares mais obscuros. Dava-se ao trabalho de documentá-los penosamente, à mão, e enviar informações detalhadas para organizações internacionais. Perguntei-lhe como vivia, e ele disse que vivia principalmente da bondade alheia. A julgar por suas roupas, pela face esquálida e pelo parco esqueleto, essa bondade era artigo escasso.
Perguntei-lhe se corria o risco de ser preso. Ele disse que estivera “apenas” quatro meses sob custódia nos últimos três anos. Um rubor pouco saudável passou-lhe pela face e seus olhos alternavam entre o piscar normal de cumplicidade e clarões de verdadeiro ódio.
Eram inesquecíveis, mas não foram esses os olhos que vi aquele dia e ainda hoje me perseguem.
Nem os de Dilobar. Por mais adorável que fosse, acho que não consigo me lembrar dos olhos dela. Mas os meus desviavam-se durante a conversa para seguir sua figura cheia, mas graciosa, vestida de azul, enquanto ela permanecia debaixo de um toldo de telha ondulada à minha esquerda, alta e notável num grupo de mulheres idosas com seus vestidos floridos, suas jaquetas de veludo e seus hijabs — os coloridos véus muçulmanos que no Uzbequistão cobrem o cabelo mas deixam o rosto à mostra. Seus finos cabelos negros caíam-lhe longos e soltos pelas costas. O vestido de algodão cobria-a inteira, até o pescoço e os pulsos, e era de um azul leve e flutuante, apesar de apertado na cintura fina.
Chris trouxe-a para perto de mim e apresentou-a como Dilobar Khuderbegainova. Alguma coisa martelava incessantemente em meus sentidos embotados. O que havia de errado? Khuderbegainova…
Ah, era a irmã da vítima daquele julgamento de fachada.
Sim, tinha os olhos cheios de lágrimas. O irmão seria executado, e eu espiava suas pernas através do vestido. Desprezava-me a mim mesmo.
Ela disse, com grande dignidade, que seu irmão era um homem bom, e que toda a família se lembraria de mim por eu ter comparecido. Agradeci e estendi-lhe a mão. Outro erro. As mulheres muçulmanas não trocam apertos de mão com homens que não conhecem. Por um momento, ela ficou desconcertada, mas estendeu a mão e agarrou a minha com firmeza, e um sorriso quase lhe perturbou os lábios. Eu pensei em dizer “não se preocupe” e prometer ajudar, mas, realisticamente, o que eu poderia fazer? E, se não podia fazer nada, por que estava ali?
Chris me olhava com curiosidade.
“Um pouco quente demais”, disse eu, e fui me sentar debaixo de uma árvore para pensar. O desprezo momentâneo que senti por mim mesmo transformou-se em raiva genuína de um sistema que torturava milhares e executava centenas, e dos meus colegas diplomatas, que aceitavam aquilo sossegadamente.