27/08/2008 - 10:00
Ao contabilizar no final da Olimpíada uma larga vantagem sobre os Estados Unidos no número de ouros conquistados, a China torna-se a maior potência esportiva do planeta. Isso é resultado de um planejamento feito há 24 anos e executado com disciplina chinesa. Em 1984, o país transformou o desafio de conquistar a supremacia esportiva em política de Estado. As escolas formado ras de atletas foram incrementadas e multiplicadas e à juventude foi imposta a idéia de que se tornar campeão olímpico é nacionalismo.
No projeto do domínio esportivo chinês, um dos principais trunfos era a participação de Liu Xiang, maior esperança do atletismo para Pequim. Tratado como ídolo nacional, ele fatura US$ 24 milhões por ano com publicidade – é garoto-propaganda da Nike –, graças à sua popularidade. Sua atuação na prova de 110 metros com barreiras levou, na segunda-feira 18, ao estádio do Ninho de Pássaro o maior público das competições. Uma multidão que mal pôde acreditar no que viu. Agachado, em posição de largada, Xiang não conseguia esconder a dor na perna direita provocada por uma contusão existente desde a fase preparatória, mas que era minimizada pelos dirigentes chineses. Na raia olímpica, a expressão de Xiang revelava o sofrimento. Ele ainda tentou iniciar a corrida, mas não conseguiu. Enquanto saía da pista mancando, a China iniciava um choro coletivo do qual participou até mesmo Sun Haiping, o técnico do atleta. “O problema é no tendão de Aquiles”, explicou. O treinador relatou que naquela manhã as dores haviam se intensificado, mas o atleta insistiu em competir. O sacrifício de Xiang ilustra o tipo de atleta que a China produz para chegar ao topo. Gente que desde cedo aprende a passar por cima de dores físicas e psicológicas para ser campeã.
Parte dos segredos das medalhas chinesas está guardada em um local de 40,3 mil m2 de área construída, em Pequim. São três pequenos ginásios poliesportivos, academia para ginástica artística, 12 salas de aula com computadores, uma biblioteca, duas salas de televisão e dormitórios para 600 pessoas. Trata-se da Escola Esportiva de Shichahai, que funciona desde 1958. Ao se percorrer seus corredores escuros, a sensação é de estar em um quartel. “Os alunos são formados para defender nosso país e honrar nossa bandeira”, afirma o diretor da instituição, Niu Decheng. A mensagem é clara: os chineses que estão ali não são preparados para competir, são treinados para vencer. “Nossa disciplina é rígida e os treinamentos tiram o máximo dos atletas. Aqui só se formam os melhores”, diz a diretora Shi Fenghua, orgulhosa por ter formado 32 campeões mundiais em 25 anos e fornecer para a equipe olímpica da China 11 atletas. Entre eles, He Kexin, medalha de ouro nas barras assimétricas, e a dupla Zhang Yining e Guo Yue, mesatenistas que subiram no topo do pódio no domingo 17.
Na quinta-feira 21, 12 meninas de sete a 12 anos ocupavam as barras da academia de ginástica. Eram assistidas por três professoras. Poucas palavras. Nenhum sorriso. Apenas repetidos movimentos sobre as barras ou manobras de solo. Os professores vez por outra chamam a atenção de alguma aluna que parou os exercícios por segundos. Basta para que a criança volte às atividades. Uma rotina que ocupa seis horas diárias de segunda a sábado. “Elas chegam a Shichahai com seis ou sete anos e nos primeiros dois anos descobrimos se o corpo delas reage bem aos exercícios. Nos quatro anos seguintes ficamos sabendo quem realmente é bom. Esses ficam aqui e depois vão representar a seleção de Pequim nas competições chinesas. Isso abre as portas para os campeonatos de alto nível internacional”, diz Zhao Genbo, professor de ginástica. Os alunos são recrutados em 238 escolas espalhadas pela China e passam por um exaustivo teste físico. Se aprovados, ficam na escola em sistema de internato e só podem manter contato com os pais e amigos nos finais de semana.
No maior ginásio esportivo da escola, aproximadamente 20 adolescentes treinavam tae kwon do. A exemplo das meninas da ginástica e dos jovens do vôlei e do badminton, fazem seguidos movimentos repetidos. Uns só defendem e outros atacam. Ao comando do professor, as duplas se movem gritando. Em seguida, silêncio e concentração até que o professor dispare outro comando. Sem intervalo, o treinamento dura até cinco horas. “O sacrifício vale a pena. A Olimpíada prova isso”, diz Zhou Peng, 21 anos, na escola desde os 16, que sonha se tornar campeão olímpico.
O centro de Shichahai é um dos três que existem em Pequim. No resto do país foram construídos mais 218 nos últimos 20 anos. Desde o início dos anos 1980, a missão dessas instituições é formar atletas para fazer da China a maior potência olímpica do mundo. Os resultados mostram que essas escolas têm algo para ensinar. Mas as lições positivas terminam nos capítulos referentes ao planejamento. O método chinês de criar atletas só pode dar certo sob um regime autoritário, que não permite aos seus campeões nenhuma liberdade de expressão e que forma uma espécie de medalhista robô. Só esse tipo de formação é capaz de explicar o gesto de Liu Xiang.