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GRANDE FAMÍLIA Gilberto de Moraes cria Larissa desde os 4 anos de idade e legalizou a situação: vínculo vai além dos laços de sangue

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A história de Sean Goldman, o menino de 8 anos filho de mãe brasileira e pai americano, virou um imbróglio diplomático e uma queda-de-braço judicial e, também, deu visibilidade a um termo usado nas varas de família e desconhecido da população: a paternidade socioafetiva. Há pouco mais de 20 anos, o termo pouco significaria para o Judiciário brasileiro. Mas, desde a Constituição de 1988, há brechas no texto da Carta Magna para a interpretação de que os laços de amor podem, sim, se sobrepor aos de sangue.

A novidade acena como uma esperança de legitimação para que uma paternidade já exercida de fato em muitas famílias se torne também de direito. Este é o argumento usado pelos advogados de João Paulo Lins e Silva, que passou a viver em união estável com a mãe de Sean, a estilista carioca Bruna Bianchi – que morreu após o parto de sua segunda filha, no ano passado -, quando ele tinha apenas quatro anos de idade. Pelo vínculo de amor que criaram, João Paulo, que se tornou segundo marido de Bruna em 2007, reclama na Justiça a posse e a guarda com a justificativa de ser o pai socioafetivo da criança. David Goldman, o pai biológico, no entanto, não concorda e quer criar o filho nos Estados Unidos, onde mora.

Para o presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, de Minas Gerais, a novidade trata de uma intervenção da psicanálise no mundo do direito. "É a percepção da maternidade e da paternidade como funções exercidas, logo não necessariamente ligadas ao vínculo genético", diz. Pode-se procurar o reconhecimento socioafetivo para registrar de fato a criança, para atestar a paternidade – ou maternidade – em casos nos quais o sêmen ou o óvulo que geraram o embrião pertencem a uma terceira pessoa ou mesmo para fazer um pedido de guarda. No último caso, podem se candidatar não só o padrasto, mas também alguém da família ou uma pessoa próxima que demonstre maior vínculo de afinidade com a criança.

É o que João Paulo Lins e Silva procura na Justiça. "Ele busca a manutenção daquele núcleo familiar que existia enquanto Bruna estava viva", argumenta o advogado da família, Sérgio Tostes, especialista em direito internacional. O profissional entrou no caso para defender a família Lins e Silva de um processo aberto pela Advocacia-Geral da União, em setembro de 2008, para restituir Sean a seu país de origem e lá ser realizado o julgamento definitivo sobre a guarda do menino. Enquanto isso, João Paulo permanece com uma liminar que lhe concedeu a guarda provisória de Sean após a morte da mulher, mas o processo de reconhecimento de paternidade se encontra suspenso.

O pai, David Goldman, diz ter feito oito viagens ao Brasil de 2005 a 2008 para encontrar seu filho, sem sucesso, além de ter tido presentes devolvidos e a comunicação com o filho impedida. Na semana passada, esteve novamente no Brasil a pedido da Justiça brasileira. Nos Estados Unidos, ele moveu um processo pedindo a restituição de Sean a seu país com base na Convenção de Haia, um acordo entre países sobre os aspectos civis do sequestro internacional de menores. "Legalmente, em meu caso, só há uma resposta: mandar o menino de volta para casa", afirmou Goldman à ISTOÉ.

O presidente da Associação dos Pais e Mães Separados, Analdino Rodrigues, vê com cautela o precedente aberto com a paternidade socioafetiva. Para ele, a figura do pai é discriminada pela Justiça em processos litigiosos, o que diminui a proximidade com os filhos e dá brechas para os padrastos entrarem com o pedido legal de alteração de paternidade. "O Judiciário se pauta no comportamento masculino de décadas atrás. Hoje, o homem é mais participativo, mas nem sempre tem seu direito garantido", reclama.

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A máxima "pai é quem cria", no entanto, ainda é assunto polêmico para muitos juízes. Segundo o desembargador Guilherme Calmon, professor de direito civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, para que o reconhecimento aconteça é preciso que o tribunal entenda não só que aquela pessoa reconhece a criança como filho e é tida por ela como pai, como o meio social que os cerca também os perceba dessa forma. E isso pode levar tempo. Uma vez atestada a paternidade, o homem terá os mesmos deveres e direitos de um pai biológico ou adotivo, tendo seu nome inserido no registro de nascimento e seu sobrenome adicionado ao da criança. "Antes, se prezava mais o lado patrimonial, por isso a preocupação com a origem biológica", explica Calmon.

Ainda hoje, porém, são poucas as decisões favoráveis, dizem os especialistas. Um dos tribunais tidos como mais modernos do Brasil é o do Rio Grande do Sul, que há cerca de dois anos concedeu ao consultor de empresas Sergio Assumpção, de 58 anos, o direito de adotar Luane, hoje com dez anos. Ela é fruto de um relacionamento que sua atual mulher, a psicóloga Dória, de 48 anos, teve numa época em que os dois tinham um namoro informal, pois ele morava nos Estados Unidos.

A menina juntou-se a seus três filhos do primeiro casamento. "Queria assegurar o bem-estar dela: garantir seu direito a herança e poder tomar decisões simples, como dar entrada num hospital ou fazer viagens internacionais", diz. O pai biológico, morador de outro Estado, não se opôs ao processo. Mas a maior surpresa veio depois que a Justiça já tinha dado seu veredicto: um exame de DNA constatou que Luane é, na verdade, filha biológica de Assumpção.

Embora sejam processos judiciais distintos, a paternidade socioafetiva pode ser, ainda, o argumento para um processo bem-sucedido de adoção. É o caso do analista de sistemas de São Paulo Gilberto Ruiz de Moraes, 35 anos. Ele convivia com Larissa, filha de sua companheira, desde que ela tinha 4 anos. Cinco anos depois, quando decidiu iniciar o processo de regularização da relação deles com base neste conceito, descobriu que o pai biológico havia morrido. Isso facilitou os trâmites legais para realizar a adoção. "Para mim, ela sempre foi minha filha. É o que meu coração diz e por isso a trato como tal", diz o analista, sobre a jovem de 16 anos. "Ser pai e ser mãe é muito mais complexo do que nos propõe a biologia", defende a assistente social Sylvia Nabinger, doutora em direito da família. "É na cabeça que os filhos nascem."