03/09/2008 - 10:00
Ao adiar o julgamento sobre o destino da reserva Raposa Serra do Sol, o Supremo Tribunal Federal postergou uma decisão que é fundamental não apenas para o desenvolvimento sustentável da Amazônia como para o futuro da própria soberania nacional. A imensa área, de 1,7 milhão de hectares, encravada em Roraima, é o maior exemplo do rumo equivocado que tomou a política de demarcação de terras indígenas no País. Nos últimos anos, os ocupantes do Palácio do Planalto, desde Fernando Collor de Mello, privilegiaram o interesse dos índios em detrimento do bem-estar de milhões de brasileiros. Fizeram um belo gesto, mas completamente irreal. As reservas indígenas já ocupam 46% do território de Roraima e asfixiam qualquer tentativa de progresso. A participação de Roraima no PIB nacional é ínfima, de apenas 0,1%. E a administração pública local responde por 58% de tudo que o Estado produz. O setor privado se esforça para elevar a participação da produção industrial (hoje, de 8,7% do total) e da agropecuária (3,8%), mas depende, acima de tudo, do pronunciamento do STF. É de se esperar que os ministros do Supremo tomem uma decisão histórica e votem pela demarcação racional das terras. "A decisão que esperamos é a da demarcação em ilhas, restringindo algumas áreas, facilitando o acesso, retirando as vilas e as estradas e dando a possibilidade de construir uma barragem", diz o governador de Roraima, José de Anchieta Júnior. "A indisponibilidade destas terras atrapalha muito o crescimento econômico."
O Brasil tem uma dívida histórica com os povos indígenas. Mas não vai resgatá-la com medidas impensadas e inconseqüentes. Ao contrário, sem um projeto econômico viável, corre o risco de pôr em risco a sobrevivência dos próprios índios, aos quais se pretende beneficiar. Na reserva Raposa Serra do Sol vivem 19 mil índios. A generosa distribuição de terras corresponde a 90 campos de futebol para cada índio, área três vezes maior do que a gleba da reforma agrária que é dada à família de um agricultor. A área plantada de arroz ocupa menos de 1% da reserva Raposa Serra do Sol e movimenta mais de R$ 100 milhões anuais. Contudo, os produtores de arroz estão sendo obrigados a se retirar do local, em função da demarcação contínua. Também ficaram postergadas iniciativas de extração de ouro, diamantes e cassiterita, outras riquezas da região. E assim os 403 mil habitantes de Roraima vêem-se forçados a adiar sonhos de avanço social, em nome das conquistas hegemônicas dos povos indígenas. A população de Roraima tem a seguinte divisão, segundo o IBGE: 24,8% brancos, 4,2% negros, 61,5% pardos e 8,7% indígenas. A aguardada decisão do STF, para ser legítima, deve observar esse universo.
Na sessão da quarta-feira 27, o relator do processo, ministro Carlos Ayres Britto, leu parecer e voto favoráveis à demarcação contínua, mas o julgamento foi adiado até outubro, depois do pedido de vistas do ministro Carlos Alberto Menezes Direito. Mas o governador de Roraima está otimista e não acredita que o parecer de Ayres Britto seja endossado pelos outros dez ministros. "Se o relator tivesse convencido seus pares, o julgamento teria continuado", diz Anchieta Júnior. "Acredito que há possibilidade de reverter. Vou acompanhar o processo. Quando entrar na pauta novamente, voltarei ao STF." Quem também espera ansioso o julgamento final é o chefe do Comando Militar da Amazônia, general Augusto Heleno Pereira, autor da crítica corajosa contra a política indígena do governo, que ele considerou "lamentável" e "caótica". Heleno defende uma demarcação que leve em conta a ocupação histórica dos produtores rurais. "Não dá para fazer previsão quanto ao julgamento do Supremo", considera Heleno. "Os ministros são muito reservados." A cúpula militar espera uma decisão do STF que considere a presença do Exército na fronteira. As autoridades militares têm dito que é necessário respeitar a "conformação da área". E a conformação atual de Raposa Serra do Sol, com municípios, linhas de transmissão e índios aculturados, é bem diferente da terra ianomâmi, demarcada de forma contínua, porém com índios pouco contatados.
A polêmica sobre a demarcação também mobilizou as forças empresariais. No início do mês, o governo do Estado e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) promoveram um seminário em Boa Vista, reunindo produtores de todo o País, com o objetivo de erguer uma bandeira contra a expulsão dos arrozeiros. Ao fim do encontro, foi divulgada a "Carta de Roraima", que aponta riscos para a soberania nacional, principalmente nas demarcações feitas nas áreas de fronteira. "O discurso, só, já não resolve. A soberania sobre a Amazônia brasileira deve ser exercida de forma efetiva", dizem os empresários. E defendem "um projeto de desenvolvimento sustentável que atenda aos interesses do Brasil e de 25 milhões de brasileiros que habitam a região". Segundo o documento, "na região de Raposa Serra do Sol o problema é ainda mais grave". A demarcação "criou uma situação no mínimo inusitada" e até "o comandante local do Exército foi impedido por indígenas de entrar naquela região".
Quem saiu irritado da sessão do STF foi o prefeito de Pacaraima, o arrozeiro César Quartiero (DEM). Ele reclama do voto do ministro Ayres Britto, para quem "a presença dos arrozeiros subtrai dos índios extensa área de solo fértil e degrada os recursos ambientais". Quartiero desafiou: "Estou agradecido ao ministro, que não mandou me prender, já é um avanço. O voto é irreal, é fora da realidade." Em sua opinião, o relator foi "desrespeitoso para com a classe produtora do País". Do lado dos índios, Ayres Britto ganhou aplausos. A advogada Joênia Batista de Carvalho, índia wa p i c h a n a d e Raposa Serra do Sol, 34 anos, comemorou o voto do ministro. Minutos antes, ela fizera exposição no STF em favor da demarcação contínua, na primeira sustentação oral de sua carreira. "O voto foi excelente e nossa expectativa é que os demais ministros sigam o relator." A família dela acompanhou a votação pela tevê, em Roraima, onde os ânimos começaram a se exaltar antes mesmo da sessão no STF. Na terça-feira 26, mais de 500 manifestantes fecharam a BR-174, entre Boa Vista e Pacaraima, para defender a demarcação contínua. Grande parte dos aliados dos índios da Raposa Serra do Sol nos protestos eram manifestantes do MST. No dia seguinte, na frente do STF, o protesto dos índios ganhou reforço do MST da região do Entorno do Distrito Federal, grupo que no passado invadiu a fazenda produtiva do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em Buritis (MG). O índio Júlio Macuxi, liderança em Raposa Serra do Sol, admitiu ter recebido ajuda financeira para os protestos. "Só ganhei passagem de avião de vinda para Brasília", diz Júlio. "Muitos sindicatos estão contribuindo, a CUT, os professores, os partidos. O MST chegou para somar."
Na outra ponta da corda, o voto de Ayres Britto pela demarcação contínua foi recebido com surpresa. Na terça-feira 26, o coordenador da bancada de Roraima na Câmara, deputado Francisco Rodrigues (DEM-RR), fizera fotografias ao lado do ministro, confiante de que haveria equilíbrio na decisão. "Houve um radicalismo enorme na declaração de voto do ilustre ministro Ayres Britto", criticou Rodrigues. O parlamentar culpa o Executivo pela demarcação contínua. "Enquanto o governo tratar os índios como zoológico humano e vitrine internacional, não vai ter jeito. A Funai é a grande desgraça dos índios", diz o deputado. "Até hoje a União não repassou um hectare de terra para o domínio do nosso Estado virtual." Estado virtual é a mesma expressão que foi utilizada pelo ex-ministro Francisco Rezek, advogado do Estado de Roraima. Para Rodrigues, a demarcação contínua representa "um réquiem de um conflito anunciado". O parecer de Ayres Britto, para o deputado, é "poético". O curioso é que a senadora Marina Silva (PT-AC), favorável à demarcação contínua, recorre ao mesmo vocabulário do deputado para classificar o voto do relator. "O voto tem um nível de sofisticação que somente a alma de um poeta poderia emprestar", disse Marina. A hora, no entanto, não é para poesia.
A nociva tutela da Funai
O empresário Eike Batista está empenhado em construir um porto em Peruíbe, litoral sul de São Paulo, num investimento que chega a R$ 6 bilhões. O projeto atende à necessidade de ampliar a infraestrutura do País e, por isso mesmo, tem apoio do Palácio do Planalto. Porém, assim que foi anunciado, passou a enfrentar resistência por parte da Funai que, com o propósito de defender interesse de índios da região, abriu fogo contra a LLX de Eike. Os emissários do empresário tentam desde o início do ano comprar uma parcela da terra onde hoje estão instaladas 52 famílias de índios tupi-guaranis, que lá chegaram em 2002. Foi oferecido a cada família R$ 1 milhão, segundo a própria Funai, e as negociações estavam bem encaminhadas. Até que, em nome da tutela constitucional, a Funai torpedeou a negociação direta e ainda desengavetou o processo de reconhecimento da terra indígena Piaçagüera, em Peruíbe, exatamente na área do novo empreendimento.
Não satisfeita em prejudicar o negócio e atrasar a construção do porto, a Funai abriu investigação interna, para identificar e punir funcionários que supostamente ajudaram a LLX de Eike na tarefa de convencer os índios. Quem pode pagar o pato é a índia Azelene Kring Kaingáng. Em 2006, ela recebeu das mãos do presidente Lula o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, concedido à organização que preside, o Warã Instituto Indígena. O governo já afastou Azelene do cargo de coordenadora-geral de Defesa dos Direitos Indígenas da Funai. E uma sindicância interna poderá expulsála definitivamente do setor público, a partir de um depoimento de funcionário da Funai e de um índio que não concorda com a venda do terreno. É bom lembrar que Azelene foi a índia brasileira que ajudou a redigir em 2007 a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas e anunciou que ajudaria a derrubar projetos do PAC que prejudicassem aldeias. "Eu estava de férias, fui aos índios falar sobre o direito à autonomia dos povos e disse que tinham o direito de escolher o melhor para eles", explica Azelene. Experiente, ela defende que os índios façam o negócio diretamente com a LLX, sem intermediários do governo.
A Funai tanto fez que convenceu a PF a abrir um inquérito para apurar envolvimento de servidores e emissários da LLX em suposta pressão sobre os índios. O Ministério Público também investiga o negócio. A LLX, no entanto, diz que o contato com a comunidade indígena foi feito de maneira "aberta, legítima e transparente". Segundo a empresa, o contato deu-se a convite da comunidade e na presença de representantes da Funai local. A LLX alega que está negociando o terreno com o espólio de Leão Novaes, para todos os efeitos legais o proprietário do imóvel. A área que a LLX está adquirindo possui 56 milhões de metros quadrados. A empresa de Eike Batista confirma que Azelene Kring Kaingáng participou de uma reunião com os índios. O empresário Eike Batista confirma os contatos com a Casa Civil da Presidência da República para apresentar os diferentes projetos de seu Grupo EBX, onde está a LLX. Mas nada a ver com a compra da terra indígena.
HUGO MARQUES