01/12/2004 - 10:00
Os Estados Unidos da América têm uma das legislações mais democráticas sobre a obtenção e divulgação de informações contidas nos arquivos do governo. O Freedom of Information Act (Foia, iniciais em inglês de Lei da Liberdade de Informação) e o Privacy Act (Lei da Privacidade) são dois grupos de regulamentações que estabelecem os níveis de transparência das agências e departamentos ligados ao poder Executivo do país. Garantem a cada pessoa – americano ou não – o direito de requerer o acesso a conjuntos de dados mantidos pela burocracia do Estado. Não se trata, porém, de um direito absoluto, pois há várias exceções e exclusões naquilo que será divulgado. Deste modo, caso o Brasil houvesse adotado ao pé da letra os termos do Foia e do Privacy Act, talvez as Forças Armadas brasileiras não tivessem de passar pelo constrangimento de tentar barrar a revelação dos chamados “arquivos da ditadura” referentes às atividades dos militares no período ditatorial (1964-1985). Mas, mesmo dentro de um sistema que pretende o máximo de abertura informativa aos cidadãos, existem brechas para o secretismo.
Somente no Foia estão relacionadas nove exceções e três exclusões às regras de liberação de documentos. Seguindo estes preceitos, os guardiões do arquivo da ditadura poderiam, por exemplo, invocar o primeiro artigo, que determina a possibilidade de rejeitar a divulgação de “material classificado”, ou seja: documentos que receberam ordem presidencial para ser mantidos em sigilo. O tempo de validade destes segredos, geralmente, é de dez anos, podendo ser extendido a mais 25 e a adiamentos iguais. Grande parte das informações sobre a política para a América Latina do ex-secretário de Estado Henry Kissinger (1974-1977) contidas nos arquivos do Departamento de Estado e da Casa Branca, por exemplo, foi reclassificada em 2003. Os dados, assim como o paradeiro de muitos oposicionistas assassinados no Chile e na Argentina nos anos 70, para citar apenas dois países, vão continuar desconhecidos. Também exemplar é a ordem presidencial de George W. Bush, que mantém ocultos documentos sobre armas de destruição em massa, que estão sob tutela do Estado.
Outra opção, ainda dentro das regras do Foia americano, para não abrir a caixa de Pandora da ditadura brasileira, seria a invocação de uma das três exclusões a divulgações de documentos do governo. Ela trata dos dados de inteligência e contra-inteligência do FBI e de assuntos relativos ao terrorismo internacional. Os militares que detêm o arquivo sobre as operações de contra-insurgência no Araguaia poderiam negar a revelação dos papéis alegando que tratam do combate ao “terrorismo internacional”, já que os guerrilheiros do PCdoB receberam ajuda externa em suas atividades.
“O Foia e o Privacy Act não são perfeitos. Dão margem a muitos segredos e existe uma luta constante para modificar essa cultura. Cada governo que entra, seja democrata, seja republicano, tem agenda particular sobre esta questão e trata de dar sua interpretação sobre aquilo que pode ou não ser tornado público”, diz a advogada Sherill Engler, da American Civil Liberties Union, ONG de defesa das liberdades civis. “No governo Bill Clinton foi determinada a desclassificação de inúmeros documentos secretos. Parte dos arquivos referentes à Casa Branca de Richard Nixon – em que ele faz referências ofensivas a judeus, por exemplo –, veio à tona. Já o governo George W. Bush segue a linha do segredo. Pode-se dizer que, nesta administração, o Foia está sob assalto”, diz Engler.
Nem sempre os americanos tiveram essas liberdades. Até a aprovação do Foia, em 1966, o ônus de buscar o direito de examinar documentos de departamentos do governo cabia ao cidadão. Também não havia um guia mostrando às pessoas como obter essas informações, e quem tivesse seu pedido rejeitado não encontrava remédio jurídico para contestar. Com a criação do Foia, é ao governo que cabe explicar recusas de divulgações.
Em 1974 entrou em vigor também o Privacy Act, que garante liberação de documentos colhidos pelo governo sobre a vida de indivíduos. Foi a partir de então que se ficou sabendo do vasto arquivo mantido pelo FBI sobre personalidades como John Lennon ou o líder do movimento de direitos civis dos anos 60 reverendo Martin Luther King Jr. O bureau federal de investigações tinha até colocado escuta no quarto de hotel de Luther King para registrar os encontros sexuais extraconjugais do líder pacifista. Mas, mesmo no Privacy Act, existem exceções à total liberalização. O governo pode, por exemplo, determinar a não-divulgação do prontuário de um cidadão, caso o documento tenha recebido a estampa de “classificado” ou seja parte de uma investigação criminal corrente.
Ambas as legislações sofreram modificações, como o Foia, por exemplo, que procurou regulamentar os procedimentos com relação a dados eletrônicos mantidos pelo governo. “Hoje é possível se obter tudo via internet, graças a esta emenda de 1996”, diz Sherill. E neste período uma série de escândalos e esclarecimentos históricos importantes surgiram em consequência destas leis. Foi em parte garimpando os arquivos governamentais americanos, por exemplo, que o escritor Edwin Black conseguiu revelar o envolvimento da empresa IBM com o regime nazista. No livro A IBM e o Holocausto, o autor conta como o sistema de computação criado pela firma dos EUA possibilitou a catalogação mais eficiente de judeus mandados para os campos de concentração ou extermínio. Também munido com o Foia, o mesmo Black escavou os nomes de outras companhias – como a Ford, por exemplo – que tiveram ligações fortes com o III Reich. “Infelizmente, nem mesmo o Foia tem sido capaz de desenterrar a verdade sobre a assimilação de cientistas que trabalharam para o nazismo ou para o império japonês. Sabe-se que muitos criminosos de guerra – gente que participou de pesquisas com armas biológicas, químicas e nucleares – foram cooptados pelo governo americano depois da guerra. Muitos documentos, no entanto, estão ainda com o carimbo de ‘secreto’. Mas o bom destas leis é que a história será contada no futuro. Todos os atos de governos americanos, desde o de Harry Truman (1945-1953), em que teriam sido feitos os contatos com nazistas e japoneses, até as atividades da administração de George W. Bush, um dia serão revelados”, diz Sherill Engler.