01/12/2004 - 10:00
Na segunda-feira 22, durante a visita relâmpago que realizou pelo Brasil, o presidente russo, Vladimir Putin, jantou em uma churrascaria do Rio de Janeiro. Mesmo se deliciando com a embargada carne brasileira, seus pensamentos estavam longe de qualquer disputa comercial com o Brasil. Um telefonema em especial, entre os vários feitos para a Ucrânia, indicava a direção do problema. De terras tupiniquins, Putin ligou para parabenizar o primeiro-ministro ucraniano, Viktor Yanukovich, por sua suposta vitória nas eleições presidenciais realizadas na ex-república soviética no dia anterior. Era uma manobra política clara. O líder da oposição, supostamente derrotado, Viktor Yushchenko, não pensava da mesma maneira e denunciou a ocorrência de diversas fraudes no pleito ucraniano. Sua alegação foi corroborada por observadores internacionais, enviados pelos Estados Unidos, pela União Européia e até pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Putin parabenizou Yanukovich antes mesmo de o próprio se pronunciar como vencedor, deixando explícita sua posição de manter forte a influência russa na Ucrânia.
No entanto, como nos tempos da guerra fria, essa posição do Kremlin é oposta à do restante da comunidade internacional, a começar pelos EUA, cujo secretário de Estado, Colin Powell, disse com todas as palavras que Washington não aceitava o resultado oficial. “Pedimos uma revisão ampla e completa da contagem de votos. Caso contrário, haverá consequências sobre nossas relações com a Ucrânia”, ameaçou o secretário. Também a União Européia, que desde o fim da União Soviética tenta esticar seus tentáculos pela região, bateu firme. “É muito difícil afirmar que essa foi uma eleição livre e justa”, afirmou Jack Straw, o chanceler britânico. Essa oposição de alianças estratégicas e influência política entre Rússia, EUA e, em menor medida, União Européia, convulsionou e dividiu a Ucrânia na última semana. O resultado foram protestos em massa – a maior parte pró-Yushchenko, condenando as eleições – em várias cidades (em Kiev, a capital, mais de 200 mil pessoas foram às ruas) como nunca havia acontecido desde a independência dessa república ex-soviética, em 1991.
Na quinta-feira 25, a Suprema Corte da Ucrânia rejeitou a publicação oficial dos resultados das eleições pela comissão eleitoral, impedindo, por enquanto, a posse do premiê Viktor Yanukovich como presidente. O tribunal, que tem mostrado independência, vai agora examinar a queixa de fraude eleitoral. Encorajados pela decisão, no dia seguinte, milhares de partidários da oposição impediram que o premiê Yanukovich entrasse no prédio da sede do governo.
Valores distintos – A Ucrânia não é uma nação qualquer. Ela é o segundo maior país europeu (atrás somente da própria Rússia) e foi o berço histórico da civilização russa, ainda no século IX. Também por isso, o país acabou se transformando no campo de batalha do que alguns analistas chamam de “fosso de valores” culturais entre os princípios das democracias européias ocidentais e a forma historicamente autocrática de fazer política na Rússia. A plataforma dos candidatos já deixava clara essa divisão. Enquanto Yushchenko se coloca como um liberal que vai estreitar os laços políticos com o Ocidente, Yanukovich tem o apoio do atual presidente, Leonid Kuchma, e de Putin, que durante a campanha apoiou seu candidato de maneira escancarada. O próprio país é dividido entre a parte oeste, onde está a capital Kiev, cuja influência européia é visível, e a parte leste, perto da fronteira russa, onde estão as grandes minas de carvão e ferro e cujos habitantes falam russo.
Nos dias que se seguiram à tumultuada eleição, diante do silêncio das autoridades ucranianas sobre as denúncias de fraude, Yushchenko, que nas pesquisas anteriores ao pleito era apontado com folga como vencedor, anunciou uma campanha de desobediência civil. Dois dias após a eleição, em meio a milhares de manifestantes que enfrentavam a neve e agitavam roupas e bandeiras laranjas (a cor da campanha de Yushchenko), ele foi ao Parlamento e fez um juramento de posse simbólico, com direito a mão sobre a Bíblia e tudo. “A Ucrânia está na iminência de uma guerra civil. Nós temos dois caminhos: ou a resposta será dada pelo Parlamento ou as ruas se encarregarão de dar as respostas”, afirmou ele. Não faltaram referências à Geórgia, também ex-república soviética, onde em 2003 uma revolução pacífica derrubou o governo de Eduard Chevardnadze.
O ministro da Defesa, Oleksander Kuzmuk, garantiu que não haverá intervenção do Exército. Mesmo assim, na percepção dos analistas internacionais, a crise pode resvalar para uma guerra civil e, desta, para uma crise diplomática internacional, como nos tempos do mundo bipolar. A não ser que o urso russo tema mais as investidas da águia americana do que perder sua ascensão sobre um país que, gostando ou não, sempre integrou sua esfera de influência.