Não se reprima. Os anos 1980 estão de volta. A chamada década perdida para os economistas – por causa da recessão, dívida externa em crescimento e inflação escandalosa de três dígitos – dá as caras para animar saudosistas por meio de sua vertente musical mais brega nas chamadas festas trash que embalam várias capitais. Mas não se engane com demonstrações apenas folclóricas do que foi a trilha sonora dos anos 1980. A tal década perdida, ao contrário do que as novas gerações podem pensar, não chafurdou o tempo inteiro na breguice. Na verdade, foi um período de euforia criativa, marcada pela explosão do rock nacional, que floresceu nas fendas da distensão política. O regime militar só foi enterrado em 1985, com a eleição indireta do civil Tancredo Neves – que coincidiu com o Rock in Rio I –, mas, nos anos anteriores, o País respirou um pouco mais de liberdade, com a anistia dos exilados políticos e o fim do AI-5. Na transição para a democracia, o Brasil viu ascender, pelo menos nas artes, um desbundado poder juvenil. Como prova desta marola nostálgica, pelo menos dois bons livros invadem nossa praia. Eles trazem intenções distintas, mas algo em comum: radiografam o período numa pesquisa esmerada.

Quem tem um sonho não dança – cultura jovem brasileira nos anos 80 (Editora Record, 530 págs., R$ 59,90) refaz, em minúcias, a trajetória artística da geração 1980 e marca a estréia do escritor Guilherme Bryan, 29 anos. Almanaque dos anos 80 (Ediouro, 304 págs., R$ 49), dos jornalistas Luiz André Alzer, 33 anos, e Mariana Claudino, 30, é menos pretensioso, mas não menos didático. Repassa tudo o que aconteceu na
década de forma enciclopédica, listando modismos, programas de televisão,  bordões, cinema, revistas, brinquedos  – os toscos primórdios dos joguinhos eletrônicos – e guloseimas famosas. Tem a pachorra de enumerar, por exemplo, verso a verso, o que cada cantor cantou no célebre
We are the world, composição de Michael Jackson e Lionel Richie destinada a arrecadar fundos para a África, que reuniu 44 artistas, o que dá uma idéia do bem-humorado preciosismo do trabalho. Jackson por sinal, era um mega-star ainda sem suspeita.

Já Guilherme Bryan preferiu seguir a revoada de talentos que andaram pelo rock, teatro, televisão, jornalismo, artes plásticas e recupera ainda o importante movimento grafiteiro que tingiu São Paulo. Segundo ele, o marco zero destes anos de estripulias foi o surgimento no Rio de Janeiro do grupo teatral Asdrubal Trouxe o Trombone, que renovou a linguagem teatral, com a irreverente montagem de Trate-me leão. Eram os jovens debochando do próprio cotidiano, numa trupe formada por atores como Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Evandro Mesquita, Patrícia Travassos, Nina de Pádua – dirigidos por Hamilton Vaz Pereira e abrigado pela lona, bem democrática, do Circo Voador, no Rio.

O efeito Asdrubal foi grande e transcendeu os palcos. Evandro Mesquita formou a Blitz, grupo parteiro do pop nacional, pedra fundamental do grande boom do rock nacional, que mais tarde forjaria bandas e poetas incisivos – e não apenas engraçadinhos –, como Cazuza e Barão Vermelho, Renato Russo e Legião Urbana, Lobão, Paralamas do Sucesso, Ultraje a Rigor, Titãs, Kid Abelha, Marina Lima e tantos outros. Se a Blitz foi o início, a grande influência do rock nacional veio de fora, com U2, Police, Smiths e Joy Division. Sem esquecer o guru de todos, o já falecido visionário Julio Barroso, líder da Gang 90. Movimento roqueiro que teve o apoio amplo e irrestrito de Chacrinha, o Velho Guerreiro, que ao som das guitarras não parava de balançar a pança.

O título do livro de Guilherme, aliás, remete a um verso da canção Bete Balanço (Cazuza e Frejat), trilha do filme de 1984 de Lael Rodrigues, com o mesmo nome. Cazuza morreu de Aids, doença que apareceu nos anos 80, e talvez tenha sido o mais impetuoso compositor da geração que parecia ter urgência em viver. A cinebiografia de Sandra Werneck, Cazuza – o tempo não pára, atingiu no País 3.059.822 espectadores, sinal do interesse por aqueles loucos anos de arraigado individualismo, em que o hedonismo e as contradições existenciais ocupavam o espaço da luta contra a ditadura. A rebeldia ganhava contornos mais individuais e existenciais e as aspirações da juventude se materializavam em letras de rock, gênero que incitava a criação não só de uma atitude muitas vezes niilista, mas de figurinos agressivos, porém coloridos, numa diluída influência do punk europeu. Influência que, por aspectos ideológicos, também dava voz às agruras proletárias. “Para mim aquele período foi a união dos filhos do Asdrubal com os filhos do punk”, atesta Bryan. Rebentos que estão aí até hoje.