08/12/2004 - 10:00
Dono de uma vasta experiência na gestão da economia brasileira (na fartura e na escassez) e aficionado do estudo da matemática, o ex-ministro e deputado Delfim Netto (PP-SP) analisa com desenvoltura os erros e acertos do governo Lula. Para ele, o atual presidente alcançou em pouco tempo o que seu antecessor Fernando Henrique Cardoso enrolou oito anos para fazer, por falta de “uma certa disposição”, e, por isso, colhe bons frutos. Mas eles estão ameaçados pela gestão do Banco Central. A insistência em metas de inflação inatingíveis e em uma política de valorização do real frente ao dólar, como arma contra a inflação, afirma o ex-todo-poderoso da economia no regime militar, cobrará preços altos à gestão de Lula. “Vão sacrificar 1,5 ponto porcentual de PIB”, adverte. Na quinta-feira 25, o deputado falou a ISTOÉ sobre estas e outras questões da gestão Lula na entrevista que se segue.
Do ponto de vista da macroeconomia, se saiu muito bem. O período de sucessão foi muito tumultuado, com um enorme reajuste do
câmbio, uma enorme desconfiança da sociedade em relação ao governo Lula e, principalmente, ao PT. Na passagem de governo, a inflação tinha voltado a 26% ao ano. Houve uma ação enérgica do Banco Central, e Palocci (ministro da Fazenda) contribuiu com o aumento do superávit primário. As duas ações trouxeram, já em maio, a perspectiva de inflação para 2003 para 7%. Daí para a frente, a persistência da política econômica produziu resultados que são hoje visíveis. O governo foi hábil quando ocorreu esse overshooting (disparada) do câmbio. Houve um renascimento do setor exportador. Deus mostrou que era brasileiro, pois a produção agrícola estava crescendo graças ao desenvolvimento tecnológico, o plantio direto e o Modern Frota (programa de modernização de equipamentos agrícolas). O Lula é o responsável pelo renascimento do crescimento.
O desenvolvimento é um estado de espírito. Acontece quando uma liderança sólida, confiável, consegue transmitir a idéia de que os empresários podem usar o seu espírito animal para obter lucros, pois não serão perturbados. É o que está acontecendo no Brasil hoje. Acredito que vamos crescer 4,8% neste ano.
O PT chegou muito mais próximo de mim. Aliás, essa proximidade, de vez em quando, até me incomoda.
Não havia outra possibilidade, a não ser o aprofundamento da própria política. O Fernando Henrique entregou o País na seguinte condição: tudo
o que podia endividar já estava endividado. Por razões que ninguém sabe direito, mas que foram produzidas por uma combinação de economistas, acadêmicos, tarometristas – que misturam tarô com econometria – construiu-seum número. No Brasil, acredite-se ou não, cada vez que a dívida chega em 56% do PIB, sente-se um certo estranhamento do financiador, que exige aumento de juros. Por outro lado, o Fernando Henrique pegou o Brasil com uma carga tributária de 28% e entregou com 38%. Depenou a sociedade, que ficou de cuecas. Era um córner, não tinha como sair.
Nessa política de hoje, eu só tenho uma pequena dúvida. Estamos,outra vez, caindo na tentação de usar o câmbio como instrumento coadjuvante
no combate à inflação. Deveríamos estar aumentando reservas; as nossas reservas são ridículas. Sem o dinheiro do FMI, elas estão em trono de US$ 25 bilhões. Temo muito que essa brincadeira no curto prazo tenha consequências desagradáveis no longo prazo.
Isso não significa nada. Esse câmbio que está aí vai sustentar a exportação presente, mas ela não crescerá a não ser que milhares de brasileiros se disponham a exportar para dezenas de países diferentes. A taxa de câmbio não está atraindo mais gente para o setor. Temos que passar de 15 mil para 30 mil exportadores. É o que vai garantir que o Brasil termine com a dependência externa. Estamos no meio do caminho.
Quando o dólar vem para R$ 2,75, há uma queda de uns 9%, mas ela não produz efeito sobre os preços, que continuam estáveis. Agora, quando voltarmos de 2,75 para 3,05 – onde eu acredito que esteja o equilíbrio –, os preços vão subir. O que se ganhou no curto prazo se perde no médio. O BC se comportou muito bem entre dezembro de 2002 e maio de 2003. A partir de maio de 2003, tem dado muita cabeçada.
A agricultura não vai tão brilhante como nos últimos dois anos. Os custos subiram com base no dólar do ano passado, e a receita vai subir com base no dólar deste ano. Haverá um estreitamento de margem. A isso se soma o fato de que os preços externos caíram. A receita do setor vai ser uns 10% menor. O problema está sendo construído cuidadosamente pela valorização do câmbio.
Delfim – Isso mostra como o Banco Central é míope. Provavelmente eles não têm a menor idéia do que estamos falando. Esta brincadeirinha de curto prazo vai ter um preço nos próximos dez meses. São vantagenzinhas obtidas com o uso do câmbio que vão cobrar um preço alto. No BC há gente decente, competente, mas acho que eles são dominados por alguns mitos. Consideram-se portadores de uma verdadeira ciência. Aliás, eles estão em uma saia-justa. O BC tem que cumprir a meta de inflação. E a meta que está aí é certamente muito ambiciosa. Esses 5,1% (a inflação, dentro da meta, que o BC diz mirar) são até um falta de respeito com a inteligência dos brasileiros. Ninguém sabe de onde saiu isso. Foi feito em cima das pernas, quando se reuniu o Conselho Monetário Nacional. Disseram: põe um pouquinho aqui, mais um pouquinho ali.
O de que existe um produto potencial (PIB) calculado por vários métodos e que, portanto, dá resultados muito diferentes, que garantem que o País não pode crescer mais do que 3,5% ao ano. O que aconteceria com o Brasil se tivéssemos 6,5% de inflação e 4,8% de crescimento em 2005? Vão sacrificar quase 1,5 de PIB para tentar chegar aos 5,1% de inflação. E não vão conseguir. Será que a sociedade não vai julgar isso um ato bárbaro? O erro original está na fixação da meta.
Tudo indica que é possível reproduzir esses primeiros dois anos – que também não são tão brilhantes, pois a situação anterior era muito ruim – se não perseguirem a meta com tanta ferocidade. O governo tem que se conformar em ficar dentro da faixa. A perseguição do centro da meta é perniciosa. Podem ficar imaginando que isso tira a credibilidade do BC. Mas o que tira a credibilidade é atingir uma meta inatingível. É enfrentar. E não adianta apresentar estudo econométrico. A História vale mais que qualquer econometria. Não tem nenhum país do mundo – indo do mais virtuoso ao mais esculhambado – que tenha 10% de juro real. Porque o Brasil tem que ter? Só salta da cabeça de economista brasileiro.
É o ajuste fiscal é que dá segurança a tudo.
O petista é que nem dona-de- casa. Ele tem uma intuição segura de que não pode gastar mais do que ganha. Que é a intuição do pobre. Quem gasta mais do que ganha é colarinho-branco, porque tem crédito.
Tem um nível no qual as coisas caminham razoavelmente bem. No micro, elas precisam de um aperfeiçoamento muito grande.
Está. Se olhar os portos, tem várias forças-tarefas trabalhando. Não tem recurso para tudo, mas o governo vai corrigindo na margem.
Tenho o maior respeito pelo Fernando Henrique, é um intelectual, fez uma administração razoável, ainda que de plantar couve. Não plantou nenhum carvalho. Mas por que, em oito anos de Fernando Henrique, não se fez o equilíbrio em conta corrente (resultado final das contas externas)? Por que precisou de um torneiro-mecânico para fazer? Faltou uma certa disposição. Uma coisa é ir empurrando com a barriga. Outra coisa é enfrentar um problema.
O PT demora, gasta 85% do tempo brigando com ele mesmo. A sorte é que isso não produz inflação. Só 15% do tempo é dedicado à administração. É por isso que estamos vendo o reconhecimento claro de que quem ganhou a eleição foi o Lula, não o PT. Mas que ele só pode administrar em um regime de coalizão, que é para onde se está indo.
De vez em quando há uma certa arrogância. O economista pensa que é portador de uma ciência, imagina saber o que você precisa. Pensa: “Não me venha aqui de borzeguins ao leito. Fica lá no Congresso e não me aporrinhe pedindo coisas. Eu sei melhor do que você o que te deixa feliz.” Esse tratamento em geral amola o deputado.
Não. Em todos os ministérios, o sujeito, quando atinge um posto importante, começa a não responder os telefonemas. O que é pior, a secretária do burocrata, que é uma burocratazinha, diz: “O meu chefe não responde nada disso.” Isso tudo se resume em uma coisa. É uma falta de grandeza para o próprio cargo e falta de educação. Eu nunca deixei de responder a uma carta ou a um telefonema.
O Lessa é um professor, um homem direito, decente, tinha bom diálogo com a classe política, mas foi instrumentalizado por um grupo mais radical. E tinha um grande problema: o de não entender a hierarquia no governo. Quem formula política é o presidente, quem executa é o ministro, e o BNDES é um braço da política. Não é um braço sem cérebro.
O Mantega é um belíssimo profissional. Tenho grande admiração pelo Mantega. Ele é um apaziguador.
O governo Lula não tinha outro caminho para fazer o equilíbrio em conta corrente (resultados das contas externas) a não ser cortar o consumo. Essa é a diferença entre o torneiro-mecânico e o ph.D. O ph.D empurrou com a barriga oito anos. O torneiro-mecânico fez.
Podemos criticar o Fome Zero, as tentativas de melhorar as políticas de combate à pobreza. Mas que há o desejo, a inclinação de fazer bem-feito, isso há. Espero que isso se manifeste agora na reforma ministerial. Não é possível colocar gente incompetente simplesmente porque é do partido.
Não sei. É só olhar.